Diário de Bordo – As Aventuras de Pinna’s Boy na Serra da Mantiqueira

Diário de Bordo – As Aventuras de Pinna’s Boy na Serra da Mantiqueira

Quinta-feira, 16 de março de 2006.

O início

17h40m. - Trabalhando em uma concessionária e autorizada Mercedes-Benz, na cidade de Mogi-Mirim, vizinha à Itapira, onde resido, fui incumbido já no final do expediente, de promover uma viagem, no dia seguinte, até a pacata e belíssima cidade de Bueno Brandão, com pouco mais de dez mil habitantes, localizada ao sul de Minas Gerais, já divisa com o estado de São Paulo. Minha ‘missão’ era levar peças integrantes do conjunto de rolamentos de um Mercedes-Benz 1618, de São Paulo, que estava quebrado naquela cidade.

Como um amante de viagens sobre duas rodas e natureza, decidi que no dia seguinte partiria bem cedo de Itapira, para aproveitar o ‘friozinho’ particular daquela região, que mesmo sendo pleno verão, é possível se arrepiar com a brisa gelada da serra. Mas o fato de sair cedo não era apenas luxo, já que a carga de batatas estava atrasada, e o Ceagesp da capital paulista, estava aguardando a chegada do caminhão, logo, saindo neste horário, poderia viajar tranqüilo, sem pressa, e chegar ao meu destino – uma oficina diesel, no horário combinado.

Sexta-Feira, 17 de março de 2006.

Pé na estrada

06h30m. - Partindo de Itapira, existe, além da ‘rota oficial’, composta por rodovias asfaltadas, mais três rotas alternativas para se chegar até Bueno Brandão. A distância varia de acordo com essas rotas, mas em nenhuma delas chega a ser muito longe. A rota oficial de que falei, e que é a mais longa, consiste em seguir pela SP 352 (Itapira-Jacutinga), cruzando assim a divisa do estado de São Paulo com Minas Gerais. Pela mesma rodovia segue-se, como costuma ser explicado pelo povo mineiro, ‘todavida’ (sic) até Ouro Fino, saindo então para Inconfidentes, e enfim, Bueno Brandão – Total de 95 Km.

A segunda opção é seguir pela SP 147 (Itapira-Lindóia). Cruzando Lindóia até Socorro. Daí segue-se por estrada de terra por cerca de 15 quilômetros até Bueno Brandão – Total de 60 Km.

Já a terceira opção é seguir pela mesma, SP 147 (Itapira-Lindóia). Em Lindóia, devia-se para Águas de Lindóia, onde se ultrapassa os limites de São Paulo, e já no estado mineiro, em Monte Sião, segue-se por estrada de terra por 22 quilômetros. Foi este o caminho que fiz na viagem de ida – Total de 72 Km. Nesta rota existe também a opção, caso o viajante não deseje ir por estrada de terra, de seguir em frente até Ouro Fino, fazendo deste ponto o mesmo percurso da primeira rota que descrevi.

O fato de eu ter seguido por esta rota, mesmo sendo um pouco mais longe que se fosse por Socorro, é o fato de que a estrada, segundo informações obtidas com populares em Lindóia, estava em melhor estado.

Café, pão de queijo e conselhos

07h20m. – Parei em uma padaria de Monte Sião, já em Minas Gerais, para tomar um café. Como se trata de uma cidade pequena, com pouco mais de dezenove mil habitantes, não é difícil que alguém lhe identifique como um ‘forasteiro’. Enquanto saboreava um cafezinho forte e quente e um delicioso e tradicional pão de queijo, um senhor se aproximou e questionou-me sobre onde estaria indo. Disse-lhe que estava de passagem, a caminho de Bueno Brandão. Perguntou então se eu iria pela vicinal e, diante da resposta afirmativa, alertou-me de que as chuvas abriram verdadeiras crateras na estrada, que já não é das melhores, aconselhando-me a seguir até Ouro Fino, fazendo o percurso pela rodovia. Respondi que iria acatar a proposta, pra finalizar a conversa, pois precisava continuar a viagem. Porém, não compensava agora descer até Ouro Fino e subir novamente a serra. Acessei a estrada de terra.

Sensação de liberdade

07h42m. – Muitos devem conhecer a tal ‘Lei de Murphy’, famosa principalmente na Internet. O fato é que comprovado ou não, as teorias da tal lei sempre acabam fazendo sentido. Durante os primeiros quilômetros do trajeto, agora longe do asfalto e das casas, já em meio ao que é conhecido como Circuito Serras Verdes de Minas Gerais*, eu poderia apostar que o velho senhor talvez estivesse enganado quanto à situação da estrada. Pelo contrário, o chão estava em ótimas condições, com poucos pedregulhos, e uma leve camada de cascalho que tornava a passagem mais confortável, permitindo uma velocidade média de 50 km/h. Havia percorrido cerca de um terço do daqueles 22 quilômetros que ligavam Monte Sião a Bueno Brandão. Voltei e lembrar do velhinho tentando me convencer a ir pelo asfalto.

Comentei com a moto que para uma estrada de terra, o caminho estava muito bom. Tá bom, eu sei! É coisa de maluco? Também sei! Mas tenho sim a mania de falar com a motocicleta, afinal, passamos a maior parte do dia juntos - somente eu, ela e a estrada, e pelos meus cálculos, já ‘rodamos’ juntos, quase 70 mil quilômetros por todo o estado de São Paulo, sul de Minas e até mesmo em um pequeno trecho do Paraná, na divisa com São Paulo. A grande maioria destes quilômetros foram contabilizados nas idas e vindas pelo eixo Itapira / São Paulo (Capital). Neste caso, a aventura deixa de ser ‘poética’ – como costumo classificar, e se torna estressante, apesar de ser apaixonado pela terra da garoa. Deixemos então a capital para outra história, e Voltemos ao interior. Em determinado momento, quando já se é possível avistar ao longe, em meio a Serra da Mantiqueira, alguns traços de quedas d’água, parei a moto para colocar a jaqueta, já que o ar estava gelado, bem como manda o clima típico daquela região. Parecia estar isolado do mundo. A sensação de liberdade que sinto nessas ocasiões é demasiadamente estranha. É como se entrasse em uma outra esfera cósmica, ou qualquer outra classificação que um expert em metafísica queira carimbar. O fato é que me sinto maravilhosamente bem. Deixo de lado conceitos e valores, desligo-me do mundo globalizado e transformo-me num pássaro livre para voar.

Peter Fonda e atoleiro

08h00m. – De jaqueta de couro, decidi sentir o vento diretamente no rosto. Acomodei o capacete junto com a caixa com as peças, na garupa da moto. Do bolso interno, além de um Hilton Long Special Reserve, saquei meu ray-ban modelo ‘BL – Caçador’. Só faltava agora a Harley Davidson Electra Glide. Nada mais ‘Easy Rider’ que isso. Porém, acredito que naquela estrada, uma custon estradeira não se sairia bem. Se estivesse acompanhado, provavelmente seria por Peter Fonda e Dennis Hopper.

Ótimo! Tudo pronto para retomar a viagem. Aciono o motor e saio, agora convencido de que o velho não sabia do que estava falando. Afinal, a estrada estava ótima. Alguém se lembra que há pouco falei sobre a Lei de Morphy? Pois bem! É agora que ela entra na história. Voltei a comentar com a moto, agora em alto e bom som, como se comemorasse algum tipo de vitória, alguma conquista, esbravejando que se tivesse seguido o conselho do amigável velhinho, estaria atrasado, gastando mais combustível, pneu, óleo e relação, por nada.

Bastou esta infeliz constatação para que, ao contornar uma curva, me deparar com uma enorme máquina retro-escavadeira no meio da estrada, bloqueando-a totalmente. Pensei que talvez estivessem fazendo obras naquele trecho. Mero engano. Ao parar e descer da moto pra conferir, não encontrei uma alma viva por perto. E a máquina estava atolada em um enorme lamaçal, formada n’uma não menos enorme cratera, muito provavelmente devido a uma erosão causada pelas chuvas. Prometi pra mim mesmo que não iria voltar. Nem que fosse pra passar por cima de tudo, mas não iria voltar os quase quinze quilômetros já percorridos. Mas não havia muito que fazer. Acendi um cigarro e sentei – praticamente desolado, diante de tal cena. Decidi levantar e retornar, impotente, até Monte Sião. Quando me preparava pra ir embora ouvi um som se aproximando. Eis que surge um outro trator. Ao me avistarem, os dois ocupantes do veículo me questionaram. “Estou tentando passar” – respondi. Um deles me informou que iriam retirar a máquina dali, mas que a operação demoraria cerca de vinte minutos. Decidi esperar, afinal, não compensava retornar. Esperei. E mais de meia hora depois, estava empurrando a moto pelo canto da estrada, por cerca de vinte metros, até acabar o lamaçal.

Tocando a boiada

08h37m. – Decidi não dar tanta importância ao fato da estrada estar danificada – e o velho certo. Continuei meu caminho. Sem capacete, munido de um óculos escuro daqueles que Raul Seixas usava, com um cigarro no canto da boca, uma estrada de terra no meio do nada. A natureza toda ali, só pra mim. Aquela imensidão de montanhas, cachoeiras e.... Vacas! Eram dezenas delas – senão centenas, atravessando a estrada, com dois ou três tropeiros em seus cavalos, tocando a boiada. Ali estava eu novamente, parado! Olhando os animais cruzarem a estrada. É algo bonito de se ver. Mas agora sim, eu estava com um pouco de pressa. Mesmo assim, não estava dando a mínima. Sexta-Feira, Minas Gerais, estrada de terra. Aquele silêncio quebrado apenas pelo barulho do motor da moto. Não iria mesmo desperdiçar um momento como este, me preocupando com horários e regras. Tampouco iria ficar bravo e tentar apressar os cavaleiros. O forasteiro ali era eu.

Missão cumprida

08h50m. – Após terminar aquela maratona bovina, a baixar a poeira, retomei a viagem. A essas alturas, faltava pouco para eu chegar ao destino, coisa de cinco quilômetros ou algo assim. Mantendo agora uma velocidade média de 20 km/h, parecia impossível trafegar. Durante cerca de três quilômetros, o que vi foi um festival de buracos, ribanceiras recheadas com lama, poças de água barrenta, dos quais passava devagar – quase parando, com a incerteza do que havia por baixo. O cascalho que jogaram na estrada pouco ajudou, sobraram apenas os pedregulhos – milhares deles, que judiavam dos pneus e da parte baixa do motor. Tinha agora menos de dez minutos para percorrer os poucos quilômetros que faltavam até chegar à cidade, e depois mais algumas ruas até chegar ao destino no horário marcado.

Enfim, comecei a avistar placas indicando a chegada do perímetro urbano da pequena estância. A estrada já estava melhor. Após uma curva fechada, os pneus puderam finalmente sentir o atrito com algo que não fosse terra. Mas não deixava de ser pedra. As ruas da cidade não possuem pavimento asfáltico, são todas feitas em calçamento. Exatamente às nove horas da manhã, cheguei à oficina, onde o Mercedes vermelho me aguardava, com o motor aberto. A missão estava cumprida.

Bar e Hotel do ‘Zé Maria’

09h15m. – Após realizar a entrega e finalizar os procedimentos burocráticos do trabalho, estava liberado para voltar, agora sem pressa. Informei-me sobre a estrada – também de terra, que liga Bueno Brandão a Socorro, já no estado paulista. Novamente fui avisado que tanto a vicinal de Socorro, quanto a de Monte Sião estavam em péssimo estado. Nesta última, eu pude conferir com meus próprios olhos. Não iria me arriscar novamente. Decidi seguir pela rodovia pavimentada, embora soubesse que o trecho Bueno Brandão – Inconfidentes também estava precário. Antes de seguir viagem, decidi parar num bar, conhecido por muitos, onde, aliás, já tinha visitado outras vezes. Duas ruas acima da oficina, em uma esquina, localiza-se o Bar e Hotel do Zé Maria. Uma boa dica pra quem visitar a cidade, é provar o delicioso pastel de queijo mineiro deste estabelecimento. No momento eu estava era com sede, e decidi parar pra tomar um refrigerante, daqueles tipo ‘caçulinha’, que já não se encontra muito por aí. Devido aos solavancos da maratona pela estrada de terra, estava com o corpo um pouco dolorido. Fiquei algum tempo sentado em uma cadeira, na frente do bar, olhando o movimento da pacata cidadezinha.

Buracos e... mais vacas!

09h30m. – Logo no início da viagem de volta, agora pela rodovia, constatei que não iria haver muita diferença entre as estradas. Com o capacete na cabeça, já que agora estava na rodovia, de jaqueta e agora sem o peso das peças na moto, poderia voltar mais rápido, não fosse os buracos na rodovia, que impedem de atingir velocidade maior que 70 km/h. O vento estava forte e gelado. Com pouca sinalização, a estrada formada por muitas curvas e poucas retas, é um convite a acidentes. Os veículos são obrigados a invadir a pista contrária, para desviar dos buracos. Em determinado momento, numa das poucas retas, pude avistar novamente um grupo de bovinos no meio da pista, sendo controlados por um jovem e um senhor. Era bem menor que a tropa que me fez parar na estrada de terra, mas mesmo assim deixava o trânsito lento. Sem acostamento, tanto animais, pedestres e ciclistas trafegam pela pista. Ultrapassei, em baixa velocidade, o grupo formado por bois, vacas e uns dez cachorros, correndo e latindo sem parar, e segui viagem. Uma viagem tranqüila, observando ao longe pequenos povoados, típicos do imenso território mineiro. Tudo corria bem, até que, ao sair de uma curva fechadíssima, dei de topo com algo que já não me surpreendia a esta altura do campeonato. Sim! Outra vaca. Desta vez, somente uma, correndo pela pista, na contra-mão, se assustou com minha presença, invadindo um matagal ao lado. Comigo não foi muito diferente. Assustado com a surpresa, imediatamente acionei os freios, traseiro e dianteiro, fazendo com que a motocicleta derrapasse, deixado um rastro no asfalto, e um cheiro de borracha queimada. Enquanto me refazia do susto, avistei um cavaleiro, de laço na mão, correndo a toda com seu cavalo, na captura da vaca desordeira e fugitiva.

Menino da Porteira

09h50m. – Deste ponto em diante, a viagem seguiu sem maiores problemas. Logo alcancei a estadual SP 352, já em Ouro Fino, que seguiria ‘todavida’ até chegar em Itapira, e voltar para Mogi-Mirim. Parei em Ouro Fino, em frente ao gigantesco monumento do ‘Menino da Porteira’, imortalizado na canção caipira composta por Teddy Vieira e Luizinho, que ganho fama nacional na interpretação de Tonico e Tinoco, Sérgio Reis, entre outros. Tomei uma água n’um bebedouro próximo, e segui viagem. A próxima parada seria apenas em Jacutinga, ainda em território mineiro, no conhecido e tradicional restaurante “Recanto dos Amigos”. De Ouro Fino até Itapira contabilizam-se 65 quilômetros. A estrada, apesar de não ser privada é bem melhor em matéria de pavimento e sinalização. Fica melhor ainda quando se atravessa a divisa do estado, chegando em Itapira, onde a rodovia passa a ser concessionada pela Intervias. Depois ainda seguiria por mais vinte e cinco quilômetros – já em rodovia duplicada (SP 147), até a empresa em que trabalho, em Mogi-Mirim. Mas não sem antes dar uma passadinha em casa, já que não fica tão longe da rodovia.

O fim

11h00m. – A viajem não chega a ser longa, tampouco cansativa, pra quem já está mais que acostumado. Porém devido aos contratempos enfrentados, na viagem de ida por pura teimosia, acabei ficando esgotado. Mas com certeza vale muito a pena. O povo, hospitaleiro como sempre, as serras montanhosas, os picos e cachoeiras que se cruzam pelo trajeto, fazem de uma simples viagem a trabalho um verdadeiro tour por um cantinho do paraíso. Com certeza é muito válido encarar tanto as estradas de terra quando a rodovia esburacada, para se chegar a um local, de povo alegre e prestativo, de clima mais que agradável, longe do stress dos grandes centros. O único detalhe é que – particularmente falando – não quero ver vacas e tratores por um bom tempo. Caso contrário São Paulo ficará sem batatas.

www.buenobrandão.com.br

Fernando Pinéccio

Itapira /SP

19/03/2006