Despedidas II

Era tanto e tão pesado aquele sentimento de finitude cerceando minhas idéias, que mal pude cerrar os olhos nas três noites seguidas depois do nosso adeus. Esse que foi adeus para valer, com direito a longos olhares perscrutando as retinas do outro.

Agarrei você pelo pulso, depois pelo braço e inspirei profundamente, duas vezes seu cheiro que foi meu durante tanto tempo. Senti que já não havia mais resquícios de floral cítrico e sim um amadeirado nauseante que constatei depois ser aroma de outra mulher.

Desde então, os dias chegam em manhãs de sucessivos e estrondosos azulados, bolas de ar inchadas de luz escondendo-se atrás das nuvens. São cinco da manhã, já estou de pé a imaginar por onde você anda. E o pior é que sei.

Sei que em seu lugar ficou um descampado, um espaço sem vegetação, desmatado, uma súplica de volta, um pedido de perdão acumulado há tantas dias, tantos meses. Ficou a rouquidão na voz pela força de tantos cigarros, a dor nas têmporas, as pernas bambas, a dormência, o gosto do sexo e de tantas aventuras pueris.

Fiquei eu sozinha em meu quarto com tanta coisa acumulada, tantas estantes, livros, discos, revistas, roupas, quinquilharias.

Restou um ser horrorizado, bastardo, errando pelos grotões de um mundo novo, tentando entender o que é isto no meu peito e os porquês se avolumando e me impedindo de olhar em volta...

Coisa triste é desconstruir tantas promessas, desencaixá-las uma a uma, guardar de volta na velha e solitária gaveta no fundo do peito para um dia usar de novo, quem sabe. Desacreditar para acreditar. Quando acreditar de novo? Quando poder olhar pelos vitrais do mundo e ver a rua, ouvir os sons, colorir as pedras, aspirar o cheiro de jasmim de manhã cedo. Onde conseguir analgésicos fortes o suficiente para burlar a força dessa dor que vai me ressecando por dentro, vai me transformando num poço, num buraco negro, num satélite desabitado, num pedaço pequeno e cinza de uma outra coisa tão maior que era o mundo.

Tudo isso eu pensei em tantas noites insondáveis e hoje consegui construir ferramentas para erguer minha confortável redoma onde passo os dias a enterrar milímetro por milímetro essa sensação de abandono. No primeiro dia, a crueza desse sentimento aparecia inevitável como um fenômeno da natureza. No segundo dia e nos subseqüentes, o que era uma indestrutível casca que se aboletava sobre a pele foi secando e tornando-se quebradiça.

Desde então, o que parece ser minha verdadeira e derradeira pele apareceu. Como de criança nova e bem nutrida, mais rosada, mais luzida, quase deixando ver o meu sangue correndo por dentro.

A sensação de abandono foi desmoronando, como tudo desmorona frente à necessidade cotidiana de sobreviver. Sobrevive-se, enfim, após dias e noites inconfessáveis, xícaras de chá, cigarros, vinhos, festas, viagens, almanaques, jornais, paisagens, ligações, laços, despedidas.

Tudo o que era disforme foi ganhando contornos, a brincadeira retomou sua graça, a ironia e o nexo de sorrir fizeram de novo de mim um ser amável, tratável, sociável e até charmoso de certa forma com essas olheiras disfarçáveis.

Lembro daquela notícia que circulou durante dias. A menina de 10 anos, então liberta do cativeiro, perdoa seus torturadores porque simplesmente alguém lhe ofereceu a chance de uma nova vida. Um dia na escola, lápis de cor, sapatilhas. Uma manhã de sua juventude liberta é mais poderosa que qualquer destruição psíquica, por isso ela prefere dar valor à força de sua salvação e não de sua desgraça.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 06/11/2008
Código do texto: T1269099
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