Casos do acaso

O mal humor que infecta o setor de trabalho, palavras ásperas criam nuvens densas, com previsão de trovoada e raios, é um tempo ruim condensado entre quatro paredes, ouvir em silêncio, “Mal amada” é a expressão que fica na ponta da língua.

Os dias correm com a dificuldade de passos enlameados, areia movediça que te puxa para baixo, mas sobreviver é preciso, então, ignorando os pormenores insiste.

As incertezas do coração, as dúvidas e o medo do futuro também assola, a solidão que sussurra de tempos em tempos a condição de “des-espero” quanto à crença de um encontro de almas parece o preço de ver com olhos de poeta, insistir e seguir, suportar, lema dos mortais, fadados a um tempo curto demais para aprender tudo, mas longo demais para o sofrimento sem sentido.

Um passo a mais na rua, um olhar incisivo que arranca o fôlego, tropeça, é amparada pelo braços fortes do desconhecido:

-Cuidado moça!-sorri com a delicadeza de um pai.

-Estes passeios* mal feitos!-sorri com o constrangimento clássico.

-Talvez seja a pressa...

-Junta tudo (risos), mas quando não estamos com pressa? Até quando saímos para algum lazer parece que temos pressa...

Sorriu animadamente.

-Verdade moça, isso é verdade...

Devia ter cerca de 30 anos, cabelos bem arrumados, roupa impecável, levava uma pasta escura em uma das mãos.

-O senhor é muito gentil, agradeço por me... como digo, amparar (risos), poderia ter sido uma queda feia.

-Não deixaria uma moça linda como você cair, oras!

Quase caiu de surpresa, por que será que a palavra linda saía com tanta poesia daqueles lábios? Ficou em silencio, sem saber o que responder, apenas se olhavam com uma cumplicidade de anos, com desejo a flor da pele.

-Tenho que ir, trabalhar é preciso... Estuda ou trabalha por aqui moça?

-Sim, trabalho em uma empresa próxima daqui, faço estágio lá na parte da tarde. É uma azul com letreiro luminoso...

-Sei qual é, será que aceitaria sair para conversar um pouco depois do seu horário?

O coração apertou no peito, sem reação, pensou, queria responder com naturalidade, mas estava achando a situação tão inusitada! Seu all star não combinava com a blusa social dele, seu cabelo não tinha o alinho necessário para estar ao lado dele, mas lembrou que: “O passado é história, o futuro é mistério, e hoje é uma dádiva” e era preciso aproveitar, oportunidades não voltam. Alem do mais era sexta-feira, que mal teria ter algum prazer para variar?

-Saio de lá às 19:00 horas.

-Gostaria que fosse mais tarde para que passasse em casa ou poderia ser logo após?

-Não tenho carro, isto seria um pouco trabalhoso...

-Em que bairro mora?

-Flor de Maio.

-Bem perto de mim, se quiser, te deixo lá e depois passo para sairmos, o que acha?

Ele saberia onde ela mora, como confiar em alguém que acabara de conhecer?

-Onde você mora?

-Florais.

-Onde lá?

-Próximo a avenida Alameda Celeste.

-Certo, me deixa na avenida que vou para a minha casa, não quero atrapalhar seu trajeto.

-Se á o que deseja, tudo bem, passo para te pegar as 19:10.

Foi caminhando com dificuldade, era um encontro, resultado de um acaso dos mais romanescos, foi trabalhar com expectativas corroendo o estômago, e tendo a certeza de que sua sexta-feira teria algo de especial.

Quando ele a deixou em casa e prometeu voltar em 1 hora, sentiu o peso da duvida, o que vestir? Ele não disse para onde iriam, não queria exagerar. Ele andava com roupas sociais, mas como saber se não era apenas necessário pelo trabalho e não um gosto. “Na duvida vista um pretinho básico” bem dizem livros de dicas, e foi o que fez, um tubinho preto, detalhes em dourado envelhecido, porém muito simples, algo entre a descrição comedida de alguem bem resolvida, e a ousadia recalcada, brincos e acessórios escolhidos com descrição, o salto médio que garantia a elegância, colocou o melhor sorriso e desceu para a portaria do prédio com uma atraso de 15 minutos. Ele esperava pacientemente dentro do carro.

Saiu do carro e veio cumprimenta-la, elogiou, abriu a porta, a música que tocava era um blues aconchegante, a roupa leve que ele vestia prometia um programa sem grandes frescuras, mas continuava com o mesmo cuidado do dia: barba bem feita, perfume suave, cabelos modelados com gel, dando um ar sério de “homem com conteúdo”.

-Vamos ao Segredos da Lua, estou certo que vai gostar muito.

Não a consultou, falou sem dar opção, mas a naturalidade das palavras demonstrou que se ela não quisesse ele certamente aceitaria sugestões, sentiu no coração uma leve variação de ritmo, chegaram a um lugar de sonhos, se sentiu a mulher mais linda e poderosa do mundo, pois todos olhavam para eles com admiração, quando se viu refletida em um espelho na entrada viu: formavam um casal tão bonito que até ela se admiraria ao vê-los juntos.

Conversaram por horas a fio, um assunto ia se emendando a outro: ele era formado em direito, mas atuava na gestão de uma empresa de consultoria, tinha algumas pós; o direito tinha sido desejo do pai, não dele, contou de sua família, amigos, dos livros que lia, dos filmes que via, tinham tanto em comum que parecia até comédia, muitas vezes se pegaram dizendo a mesma coisa ao mesmo tempo sobre algum assunto, e os olhos cúmplices pareciam reluzir com tais coincidências.

-Já são 4:30 da manhã!

Ele disse assustado, parecia não acreditar na possibilidade real daquilo.

-Melhor irmos embora Selene, antes que o sol suba ao céu e me sinta no direito de passar o dia inteiro com você...

Sorriu pela delicadeza que colocou o fato de estar tão tarde, e estava mais que certo, mesmo que não quisesse no fundo de sua alma ir embora, era preciso, tinha muito o que fazer em casa, estudar por exemplo.

-Então vamos Miguel..

Indo pelas ruas desertas, o blues tocando, o sentimento de paz que tinha ali, com um homem tão interessante, fascinante, ao lado, sentiu que seus 21 anos mal vividos importavam pouco, parou na porta de seu prédio, pensou se convidava a entrar, lembrava o quão caótico estava seu apartamento, e não sabia também o que aquilo poderia significar para ele.

-Caro Miguel, agradeço a saída, foi um imenso prazer.... -abaixou os olhos, ele a olhava com olhos tão cheios de doçura.

Ficou tentando encontrar as palavras, ele levantou o rosto dela com os dedos e olhou nos olhos:

-Você é uma mulher incrível Selene.-deu um beijo suave em seu lábios.

Envolveu-a nos braços como que toma um buquê de flores, se sentia protegida e desejada, ele tinha o cheiro mais inebriante que suas narinas haviam experimentado, era suave como a melodia que tocava, tinha exatamente o que gostaria de encontrar e fez aquela noite, madrugada, ter sentido.

-Quer ir a meu apartamento, podemos beber algo, ouvir música...

-Moça linda, não se preocupe em ser como todas, não tente me agradar, quero te sorver como a uma poesia, sem pressa, sem avidez, se quer que eu suba, saiba que será exatamente para o que me propõe...-ficou surpresa.

-Então quer subir para me fazer mulher?

Ele riu ruidosamente com a expressão irônica que ela tinha ao dizer isto.

-Como pode dizer isto, sua espontaneidade realmente me deixa fascinado.

-Sutilezas a parte, quero que a reticencia norteie este fim de noite.-ela disse com a firmeza que poucas vezes usava, mas aquela noite tinha que ser toda perfeita.

Subiram, no elevador só se olhavam, ele cariciava levemente seus ombros com uma mão e com a outra sua cintura. Sentaram no sofá, Selene trouxe vinho, taças, ligou o som.

O sol os descobriu ali, trocando confidencias no sofá, com o carinho de velhos amigos, com o desejo de novos amantes mas fazendo amor só com as almas. Aquela noite não se tocaram, mas se amaram com a poesia que poucos experimentam, o anjo e a deusa grega tiveram sua chance, de, em meio a milhares de pessoas, encontrar um alguém....

[Continua...]

T Sophie
Enviado por T Sophie em 14/11/2008
Reeditado em 14/02/2009
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