MILAGRES DO DESTINO

Numa pequena cidade situada no Litoral Sul do Estado de Alagoas, onde eu nasci, morava uma numerosa família, cujo pai, o seu Manoel, um pequeno agricultor que, apesar da vida sacrificada que levava, era uma pessoa muito alegre e comunicativa.

Nas poucas horas de descanso de seu Manoel , os vizinhos sabiam que ele estava em casa porque gostava muito de cantar, principalmente a canção " Sertaneja " e as músicas do saudoso " Gonzagão ".

Como pessoa solidária que era, prestava muitos favores a quem quer que necessitasse dos seus préstimos. A esposa, a dona Marina, também era comunicativa, mas não encontrava nem uma "horinha" para prosear com suas amigas, porque os afazeres não lhe davam tempo nem para pensar, pois, quando não estava cuidando de um filho pequeno estava esperando outro. E, assim , acabou gerando um time de futebol, juiz, assistentes e parte da torcida, uma vez que teve 17 filhos.

Eu era a melhor amiga da família, principalmente de seus filhos : brincávamos juntos, saíamos juntos, partilhava com eles alegrias e tristezas... Éramos iguais até na pobreza, e eu, pela amizade que nos unia, fazia parte de suas vidas.

Um dia, chegou na pequena cidade, o senhor Ladislau, um moço muito educado, para trabalhar numa das poucas repartições públicas da Cidade. Era o habitante mais bem vestido e perfumado que já havia colocado os pés no lugarejo. Todos o respeitavam, não só pelo posto que ocupava, mas, principalmente, pelo seu bom e irrepreensível comportamento.

Numa tarde, quando seu Ladislau passou pela porta de seu Manoel, todo garboso dentro de seu terno impecavelmente branco e engomado, o senhor Firmino, um vizinho ignorante e reconhecidamente mexeriqueiro e preconceituoso comentou quase sussurrando : " ... Ele anda assim como um armofadinha porque é "diretô da Coleturia Federá " e sorrindo, exibindo o seu desfalque dentário, falou : " dizem que esse "nego" tombém é pueta, faz histora de pescadô e é adevogado...E pondo ainda mais veneno na voz, piscou um olho e disse, maldosamente : "deve ser o adevogado mais preto da Terra, pur isso veio dá com os costado nesse fim de mundo onde o Judas perdeu as bota "...

Revoltada com a discriminação , uma das filhas do casal, MARIA, como tantas outras Marias que nascem e morrem todos os dias, disse afrontosamente : " Eu sou preta e nem sei o que um adevogado faz, mas quando crescer vou ser adevogada e andar bem vestida e cheirosa como o seu Ladislau..."

Todos os presentes, até seus pais, histericamente deram gargalhadas pelo absurdo que, segundo eles, haviam acabado de ouvir.

Como poderiam acreditar naquela "bobagem" se na cidade não havia nem escola com Curso Ginasial ? Mas Maria, que até então nem sonhava ultrapassar o curso primário, deu asas ao sonho nascido naquele momento. Para ela era uma questão de honra ser advogada, para cumprir a promessa que somente ela havia acreditado ser possível.

Quando completou dezoito anos, apesar dos protestos de sua família, jogou seus limitados pertences num saco, pegou carona num caminhão e muitas horas depois estava na Capital acalentando um sonho em que só ela e sua esperança acreditavam.

Maria apavorou-se quando viu a grandiosidade da cidade. Nunca imaginou que houvesse no mundo uma cidade com tantas casas e com tanta gente circulando pelas ruas ... E as lojas ? E a Feira do Passarinho ? E as bancas de revistas e jornais ? e o Gogó da Ema ?

Tudo para ela era exageradamente grande, até sua sorte, porque uma semana depois de ter chegado já havia encontrado trabalho numa Casa de Saúde, ajudada por sua irmã mais velha que a hospedara na casa humilde de uma vila mal cuidada e lamacenta.

Imaginem alguém arranjar um emprego de secretária de uma imensa Clinica especializada em Doenças Mentais somente com um diploma do Curso Primário ?

Imaginem alguém fazendo um teste datilográfico sem nunca ter chegado perto de uma máquina de escrever ... Era uma "coisa de doido" imaginar que seria possível ... Mas como "Deus escreve certo por linhas tortas", colocou a sorte a seu favor e Maria, milagrosamente, mesmo sem saber fazer uso de toda aquela engrenagem, passou no teste e foi admitida. Depois de vencido o primeiro desafio, Maria saiu correndo atrás de uma escola de datilografia, fez curso intensivo, e aí, sim, estava preparada, datilograficamente, para exercer a função.

Incentivada pelo seu ideal, fez Exame de Admissão ao Ginásio para o único Colégio Estadual e, mais uma vez, o destino a ajudou Trabalhava de dia, estudava à noite e, mentalmente, ainda tinha que alimentar a esperança de ser advogada, e como era uma sonhadora inveterada, queria também fazer poesias, como o seu Ladislau... Não se importaria se, voltando à sua terra natal, ouvisse seu Firmino comentando com outro vizinho fofoqueiro : " - aquela pretinha é a Maria filha do seu Manoé que foi morá na cidade grande e agora diz qui sabe até fazê puisia cuma o seu Ladislau “...

Um dia, Maria, depois de ler, repetidamente , " O Mal Secreto " , resolveu fazer uma poesia baseada nele. Não no seu conteúdo, é claro, mas obedecendo a sua harmonia, sua musicalidade. Após uma infinidade de poesias rascunhadas, sem sucesso, Maria aprendeu a metrificar, colocar rimas e passar para o papel o que vinha em sua imaginação, e cada vez mais se aperfeiçoava na arte de versar.

O tempo foi passando e Maria, já no terceiro ano ginasial, deu asas à sua imaginação e incentivada por um amigo que gostava de ler suas poesias e acreditava no seu sucesso literário em um grande Centro Cultural, como o Rio de Janeiro, e confiando na hospitalidade de seu tio, fez um acordo trabalhista com a Casa de Saúde, onde permanecia, comprou uma passagem aérea na extinta " Cruzeiro do Sul ", colocou seus pertences na mala que substituiu o saco da primeira viagem, vestiu sua melhor roupa e voou para a Cidade Maravilhosa, num chuvoso dia 8 de novembro.

Como a sorte sempre foi sua melhor aliada, no dia 16 de novembro já começou a trabalhar no escritório de um hotel, no Centro da Cidade.

Tinha uma boa caligrafia e gostando de exibi-la, escreveu :

" Homem casado quando ama

outras mulheres na rua

levanta aquelas da lama

e põe defeitos na sua ... “

Displicentemente, deixou seu escrito num balcão do escritório e um Escritor de Lisboa, a serviço do Grupo de Estudos do Porto, lendo a mensagem, disse:

" – Que bela quadra !!! - Quem é o autor? E, Maria, meio sem jeito, respondeu : fui eu que escrevi, de brincadeira... E ele admirado, ou talvez para testá-la, incumbiu-a de escrever outras "quadras" que publicaria num livro, motivo da pesquisa do Grupo, envolvendo literatos e ilustres vultos brasileiros. E, como cidadão íntegro, de palavra, dedicou-lhe uma página como " poetisa desconhecida, com reduzidos dados biográficos e três "quadras", como até hoje é conhecida a trova em Portugal.

Aquela publicação era o que faltava para que Maria se sentisse uma poetisa de fato... E ela, que a cada dia inventava um novo sonho, resolveu cursar a quarta série ginasial.

Trabalhava o dia inteiro e estudava à noite... Morava em Realengo, trabalhava no Centro e estudava em Triagem. Saía de casa às sete horas da manhã e nunca retornava antes de uma hora do dia seguinte. Tudo isto correndo atrás de um ideal :

a vontade de vencer... virar "gente grande ".

Depois daquele ano, que lhe pareceu um século, Maria continuou estudando e fazendo versos.

Tempos depois fez o Curso Clássico, o mais apropriado para os vestibulares dos Cursos de Ciências Sociais.

Feito o vestibular, Maria foi classificada na Segunda opção, jornalismo. Ainda não era dessa vez que se tornaria advogada. Fez o Curso de Jornalismo e teve oportunidade de assinar várias colunas literárias em alguns jornais de pequena e média circulação...

Foi aí que, baseada em sua própria vida, escreveu o soneto :

Sonhos de Condor

Em minha vida simples, malograda,

de filha de modesto agricultor,

faltava tudo, e não faltava nada,

porque nasci num lar cheio de amor !

E, cedo, minha luta foi travada,

pois calcada em meu pai, um lutador,

não quis me sentir ave engaiolada,

e sonhei alto em vôos de condor...

Não pude ter infância e juventude,

nem mesmo Deus nos dando amor, saúde

e a régia proteção da deusa Ceres ...

Mas, para compensar a imensa lida,

Deus, pondo poesia em minha vida,

me fez a mais ditosa das mulheres ! ...

Entusiasmada com a sua produção literária, já bem aceita por renomados poetas e críticos, acrescentou à sua inesgotável fonte de desejos a vontade de publicar um livro, mas o projeto não saiu das folhas de papel datilografadas... Faltava-lhe o principal : a verba para cobrir as despesas da edição.

Ingressou em algumas agremiações literárias, mas o sonho de ser advogada parecia Ter ficado para trás, o que lhe dava uma enorme sensação de fracasso.

Contudo, numa das costumeiras reuniões literárias, o destino, mais uma vez amigo solidário de quase todas as suas horas, colocou em sua direção um renomado poeta que ela conhecia apenas de nome e, naquele momento, percebeu que se operara não apenas um encontro entre pessoas comuns, mas um encontro de almas... E esse encontro inesperado transformou-se no encontro eterno que somente Deus poderia operar... Deu-se ali uma infinita comunhão de almas e corações.

E para agradecer a Deus, como fazia sempre que recebia uma graça, Maria humildemente fez sua singela oração :

Prece

Eu agradeço a Deus pelos dias bons,

que revigoraram minha fé ;

pelos dias maus,

que me ensinaram a viver ;

pelos dias alegres

que me inspiraram poesia ;

pelos dias tristes

em que pude ser mais sentimento que razão

e pude mergulhar na fantasia ...

Eu agradeço a Deus por meu dote de rimar

pelos passos firmes que me ensinou a dar,

por te dar encanto em forma de magia ...

Eu agradeço a Deus

por haver te encontrado,

por seguirmos juntos a mesma jornada

e por nos mostrar tanta poesia ...

Eu agradeço a Deus

por tudo que não fui e que hoje sou,

e pelo maior bem que me legou,

porque não fez de mim " qualquer Maria “...

Os anos foram – se passando e o seu poeta, além de patrocinar seu livro de trovas, a incentivou a realizar o seu primeiro sonho manifestado, motivo das gargalhadas de seus familiares e de seu Firmino, o vizinho preconceituoso, que era ser advogada, mesmo sem saber o que um advogado fazia na vida.

Maria, que já imaginava esgotados todos os milagres que o destino lhe poderia proporcionar, apesar da luta diária , movida pela energia que lhe transmitia o seu Poeta, companheiro de todas as horas, ingressou na Faculdade de Direito e, graças à sua Estrela que continuava a brilhar, concluiu o Curso que tanto almejava, com o direito e o orgulho de poder exibir o Histórico Escolar mais honroso que um ser humano poderia almejar.

Com seu Diploma de Graduação nas mãos e para reforçar o cumprimento do desafio a que se propôs quando ainda era criança, Maria fez um brilhante Curso de Pós – Graduação , especializando-se em Direito Civil e Processo Civil, quando já havia publicado mais um livro de trovas...

Depois, Maria deu à luz o seu terceiro livro contendo trovas, sonetos, poemas etc., o que a consagrou definitivamente como poetisa.

Mas, como "na vida tudo passa" e a ventura não pode ser eterna, depois de quase três dezenas de amor, companheirismo e amizade, seu Poeta subiu para um Plano Superior, ao encontro de outros poetas, e Maria, movida pela tristeza, escreveu :

No momento em que partiste

pranteei minha viuvez ...

Foi o trajeto mais triste

que uma lágrima já fez ! ...

E, ainda sob o impacto da partida, Maria tentando imaginariamente se convencer de que a ausência não é eterna, de que o Caminho do Além pode ter um retorno, num dos repetidos momentos de saudade e de amargura, guiada pela força do seu próprio desespero, seguiu ao encontro de sua

“Via Crucis”

Foste embora e eu, sedenta de carinhos,

tentando alimentar minha ilusão,

fingia encontrar rosas nos espinhos

com que marcaste a minha solidão...

Depois, tentei seguir outros caminhos,

mas, sem achar a tua direção,

na Via Crucis longa dos sozinhos

deixei pedaços de alma e coração...

E, nessa andança inútil, sem destino,

provei a dor cruel do desatino

e todo o dissabor dos desenganos...

Não te encontrei ... Por isso, em poucos meses,

meu coração parou milhões de vezes,

minha alma envelheceu mais de cem anos...

Maria, que embora com muito sacrifício se tornara uma vencedora, em todos os desafios a que se propôs continuou humilde, tanto quanto o era no tempo em que morava na cidade pequena que nem constava do Mapa do Brasil. Mesmo depois de dezenas de anos distante de seus familiares, continua visitando-os periodicamente e prestando toda a ajuda que lhe é possível, demonstrando todo o orgulho que sente por poder privar da amizade dos amigos de infância, de dizer que é filha do seu Manoel e da dona Marina... de que tem 10 irmãos pobres, mas honrados; enfim, um mundo de motivos para acreditar nos milagres do destino ...

Mas o que mais a deixa feliz é perceber o quanto Deus foi generoso permitindo que ela aniversariasse com Seu Filho : Jesus Cristo, Maria, como Ele, nasceu num Dia 25 de dezembro...

E para agradecer por esta graça divina compôs :

Lembranças ...

Quando vem o Natal, vêm - me à lembrança

as histórias que ouvia, os madrigais ...

E tento reavivar a confiança

que, na infância, traziam meus Natais ...

Recordo a casa cheia de criança,

meus pobres natalícios sempre iguais,

mantendo acesa a chama da esperança

no " presente " de Deus para os meus pais...

Num Natal ... Vinte e Cinco de Dezembro,

há quanto tempo quase nem me lembro,

generoso, o Bom Pai Celestial

tendo pena por ver tanta pobreza,

num gesto de piedade e de grandeza,

mandou-me como um brinde de Natal ...

Depois de ler Milagres do Destino, o leitor se perguntará : isto será realidade ou ficção ? E na dúvida, pensará : só pode ser ficção, porque como poderia alguém saber tanta coisa sobre a vida de uma simples Maria ? Uma Maria que nasceu, como tantas outras, numa minúscula cidade pobre do Nordeste ?

E, silenciosamente, a voz invisível da criadora de Milagres do Destino responde : - Não, amigo, não é ficção ! É uma grande realidade!

... Essa pessoa, orgulhosa por seus pais, irmãos e demais familiares e amigos, hoje infinitamente agradecida a Deus por tudo que, honestamente, conseguiu conquistar, sou eu: Maria Nascimento Santos Carvalho ! ...

Maria Nascimento
Enviado por Maria Nascimento em 14/11/2008
Reeditado em 14/11/2008
Código do texto: T1283242