NUM DIA ÚTIL/INÚTIL

Acordou às cinco horas da manhã. Tomou banho, escovou os den-

tes, vestiu-se com pressa, sentou-se à mesa e começou a tomar ca-

fé. Quando acabou o café, entrou no quarto e beijou o rosto da mu-

lher que ainda dormia. Depois, saiu e se dirigiu à parada do ônibus.

Cinco horas da tarde é uma hora propícia para se pensar na exis-

tência. Pretexto para mais um copo de cerveja. A desesperança, a so-

lidão, o medo povoando um espaço imenso.

Sentado à mesa de um bar tomando cerveja, olhando as pessoas

e pensando num possível ato de redenção.

Redenção?

Todos fodidos na parte apoderecida do país. Ele pensava na vida

e na morte, no futuro que não haveria, na violência do dia-a-dia. To-

dos fodidos num tempo de dolorosas incertezas. Ele sabendo dos son-

hos a morrer nas contruções, do sangue se derramando nos cana-

viais, do salário chegando morto às mãos. Não era preciso a lágrima

antes do necessário.

A estrela necessária já estava no céu quando ele saiu do bar.

Caminhando devagar, contemplava a realidade nos bêbados, nas

prostitutas, nos mendigos. Caminhando devagar chegou ao ponto do

ônibus. Ficou surpreso com o tamanho da fila e com a contatação de

que ali não havia um único rosto conhecido.

E agora, sono ou insônia à espera da manhã. Permanecia a frá-

gil esperança, a certeza de que amanhã era preciso acordar às cinco

horas da manhã. Dentro da noite sem sonhos, a sentença já estava

dada.

Num momento em que desconhece a felicadade, guardava a

manhã para edificar a miséria de cada dia.

Noutro momento o amor era feito. Um olhar, um beijo dado na

boca. As mãos que tocavam os seios da mulher amada, a língua que

passeava pelo ventre, o desejo que não podia esperar mais e um grito

confirmando a explosão do prazer. Momento em que a vida deixava de

ser uma merda, para ser uma coisa azul se derramando na noite.

Levantou-se tarde. Foi até à cozinha, pegou uma xícara e a en-

cheu de café. Já passava das seis e o atraso era inevitável. Bebeu

dois goles de café, colocou a xícara na mesa, voltou ao quarto e acor-

dou a mulher com um beijo nos lábios.

-Que foi? que horas são?- ela perguntou meio assustada.

-Já passa das seis.

-Meu Deus, você perdeu a hora- sua voz tinha um tom de afli-

ção.

-Perdi. Hoje eu não vou trabalhar.

Nas manhãs dos dias úteis a vida exigia que ele acordasse às

cinco, enfrentasse os ônibus lotados, chegasse na fábrica às sete pa-

ra derramar o suor e assim ganhar o pão de cada dia. Viver tudo isso

era dizer que a vida não valia a pena.

Andando pelas ruas, ele viu a vida que se perdia nos edifícios de

luxo que com seu lixo alimentava muita gente. O preço de quase todas

as coisas gritadas nas esquinas. Os desempregados atrás de alguém

que os explorasse. Na praça, a palavra do pregador anunciando o apo-

calipse.

JOAQUIM RICARDO
Enviado por JOAQUIM RICARDO em 15/11/2008
Código do texto: T1285112
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