EU e o MENDIGO, o MENDIGO e EU

É muito difícil ter a coragem de expor façanhas e impropérios de si próprio, principalmente quando são de situações quase que corriqueiras na vida de muitos que ainda são adeptos à bebedeira tal como fui, mas é muito necessário, pois, quem sabe, sirva como exemplo.

Alguns dizem que o alcoolismo é um vício hereditário, outros, que é uma doença incurável. Nada disso, digo eu: ele é o fim da picada.

Há uma infinidade de definições para o alcoólatra, tais como: safado, ordinário, cachaceiro, irresponsável, imprudente, mas, o melhor de todos, o mais acertado é sem dúvida: “sem-vergonha”.

Segue abaixo uma narrativa hilariante, fruto da minha antiga bebedeira.

*

“1978 - Uma sexta-feira, véspera de aniversário de minha filha que completaria um aninho de vida. Eu estava feliz.

Algumas crianças já haviam sido convidadas para animar o evento com suas divertidas alegrias; para comer do bolo e se empanturrarem com guloseimas e assim cantarem o “parabéns pra você”.

Naquele dia eu havia recebido o salário do mês que, como sempre, guardei-o no bolso do paletó verde, sim! Parece esquisito, mas o paletó era mesmo verde: verde-cana, que se diga. O qual me foi presenteado por um amigo.

A sexta-feira acabou, fui dormir. Mal o sábado clareou e já estava eu lá na fábrica fazendo hora extra e cuidando dos afazeres. Vez em quando me lembrava da festinha da filha que seria logo mais à noite e me alegrava com um sorriso meigo a se irradiar no coração. É maravilhoso lembrar das pessoas amadas quando se está ausente.

Ao meio-dia voltei para casa cumprindo a irresistível via-sacra dos finais de semana, de boteco em boteco. Parecia estar pagando uma promessa inacabável ao satisfazer-me enchendo a cara, e hoje me clareio que havia um prazer mórbido ao me autodestruir; uma tentação incontrolada.

Lá para as tantas, da tarde, ao cumprir meu penúltimo compromisso com o copo, me deparei com um indivíduo, um mendigo, que isolado de qualquer atenção humanitária catava restos de pipoca espalhados na sarjeta e prazerosamente devorava-as como se fora o mais requintado dos alimentos humanos. Condoí-me daquela miserabilidade e o convidei a se aproximar. Ofereci-lhe qualquer coisa a comer, mas ele exigiu vodka. Achei esquisito um mendigo querer uma bebida tão nobre, mas, dei-a, e ele a ingeriu num movimento brusco, goela abaixo. E ficamos a prosear. Tinha ele um olhar triste frente aos olhos azuis; a pele suja e escamada pelos maus-tratos; roupa esfarrapada e fétida; cabelos sebosos e encaracolados e falava o português com um sotaque quase que incompreensível. Disse-me ser europeu e que fugira da Rússia por motivos vários. A princípio nada queria falar. Dei-lhe outra dose da vodka para desenrolar a língua e se comunicar com mais perceptividade e foi então que ele passou a falar dos czares, de Yuri Gagarin, de Moscou, de San Pitsburgo, da Praça Vermelha, de Stalin, de Lênin, do poderoso Leonid Brezhnev (naquele tempo não se podia falar de comunistas por aqui) e de tantos outros nomes que não mais me lembro. Disse-me, com um sorriso meio tristonho e transitório, que, outrora, havia sido um técnico da aviação e que aqui, no Brasil, era ele um técnico do cata-cata. Rimos juntos e ficamos assim... uma espécie de amigos.

E no lugar da vodka, tome-lhe pinga.

O botequeiro mostrava-se insatisfeito e inquieto com a presença do tal freguês.

Paguei a conta e o convidei a almoçar comigo, em minha casa. E lá vamos nós, ombro-ombro cambaleantes e desaprumados pela rua. Eu e o mendigo, o mendigo e eu.

A patroa nos recebeu de cara feia e veementemente retrucava com aspereza aquele indivíduo dentro de sua casa, sentado à sua mesa. Mas, com todos esses ferrenhos obstáculos não me contive. Eu queria por divina força ajudar àquele mísero que só tinha uns farrapos no corpo como único cabedal, e para minimizar sua situação eu o autorizei a se banhar com direito a chuveiro quente, toalha, cueca, calça lavada e passada, meia, sapato (usado) xampu, espelho, sabonete, creme de barba, barbeador, desodorante, chinelo, loção pós-barba, tesoura e pente.

O sujeito demorou meio século para se banhar cantarolando em russo: haja paciência. Por fim... hei-lo. Assustei-me com sua aparição. Nem parecia o mesmo que há pouco entrara no banheiro. Estava ele limpidamente vestido, barbeado e penteado.

Fiquei contente com a minha boa ação: a famosa ação de graças da qual não vejo nenhuma graça. Sentou-se e comeu fartamente do meu frango.

- Agora o senhor pode ir embora – disse a patroa.

- Espere um pouco – eu falei. E a seguir entrei no quarto e de lá voltei com o dito paletó verde, e o mandei vestir. O homem ficou radiante com o presente, agradeceu por tudo e foi embora a passos apressados.

Sentei-me no batente da porta e fiquei a pensar o quanto que eu fui útil àquele miserável. Achava que uma boa ação é paga com outra.

Passados uns vinte minutos eu falei para a patroa:

- Poderia me trazer um cigarro, o meu acabou!

Com uma voz indócil ela me interrogou:

- Você não estava no bar, porquê não comprou?

- Por que gastei tudo com a bebedeira! – e bradei insistente: - Então traga-me um dinheiro. Irei comprá-lo!

- Onde ele está? – falou com muita prudência.

- No paletó verde, oras! – respondi-lhe esbravejante (coisa de bêbado). Não é ele nosso cofre?

- Mas... o paletó verde você não deu ao mendigo?

- Meu Deus! – gritei desesperado.

A seguir saí correndo pelas ruas, enlouquecido, à procura do distinto mendigo. E a todo vizinho que eu deparava, assim perguntava:

- Você viu passar por aqui um mendigo vestido num paletó verde?

A resposta era sempre a mesma:

- Mendigo de paletó verde? Nããão!

Já outros me zombavam, assim:

- Você é louco? Mendigo só se veste com trapos! Vi nenhum não.

E agora? Como pagarei o aluguel da casa, a luz, a água, o leite da criança, e a comida do mês?

Só me restava xingar o russo e isso eu fazia a todo instante, gritando:

- Tomara que aquele desgraçado morra!

Anoiteceu

Não houve festa.

- Só no ano que vem - dizia eu aos convidados que iam chegando.

Por um bom tempo fui chacoteado como: “o homem do paletó verde”

E você leitor, quer passar por um vexame desse? Então beba!”

O Autor

SP -Nov / 2008

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 27/11/2008
Reeditado em 05/07/2020
Código do texto: T1306827
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