Circular

Após aulas cansativas eu deixei o prédio da faculdade e andei até o ponto por entre as árvores. Me uni à massa de estudantes de estilos variados, todos olhando atentos para a mesma direção da rua como suricates no deserto. Uma mão me tocou o ombro.

- Desculpa, cara... você sabe se já passou o Circular, linha dois?

- Não, acabei de chegar... também tô esperando o Circular.

O rapaz era loiro, com barba por fazer, um pouco mais baixo do que eu. Um ar despojado, bolsa a tiracolo, muito típica. Olhos azuis. Azuis olhos.

Ele se afastou e dali a um tempo, passou o Circular. Uma multidão se aglomerou em tornos das portas. Me esgueirei pra dentro e achei um canto vazio. Em pé, óbvio. Ônibus vazios ao meio dia são realmente lendas.

Durante o curto trajeto, volta e meia eu olhava para o outro lado do ônibus. Em meio à profusão de cabeças e membros, às vezes eu enxergava aquele rosto cru e dourado. Olhava para o chão, para a janela, para ele, para a janela de novo. Não passou disso. Quase uma epifania de Bandeira, um alumbramento. Um olhar que funciona como uma laçada bem dada, tudo ao redor não importa mais.

Ponto final. Desci ansioso do ônibus e senti os raios de sol penetrarem no couro cabeludo. Andei até a calçada mais lentamente que o normal, não táo lento a ponto de alguém perceber. Mas ele não desceu. Já descera em algum ponto anterior, enquanto as cabeças e membros me ludibriaram. Ou então estava perdido em algum lapso temporal, numa época em que aquela situação pudesse passar dos olhares sem se tornar um ultraje.

Só aí eu percebi que não havia Circular.

Guilherme Eddino
Enviado por Guilherme Eddino em 31/03/2006
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