REMINISCÊNCIAS

Eu nasci e me criei numa pequena cidade de interior onde só havia um posto de saúde, um cinema de péssima qualidade, duas escolas primárias: uma dos pobres, quase miseráveis, e a outra das crianças cujos pais tinham melhor poder aquisitivo.

Era aluna da escola dos quase miseráveis, mesclada com alguns alunos com melhor situação financeira ... E, por isso mesmo, às vezes havia choques de identidade, ocasionados pelo preconceito daqueles que se julgavam melhores do que os outros.

Desde o meu primeiro dia de aula naquela escola, que se chamava Grupo Escolar Ignácio de Carvalho, situado na única praça existente na época, no centro de Coruripe, na Rua do Comércio, me identifiquei, inexplicavelmente, com Alícia, uma colega que, pelas indumentárias e pelos materiais escolares de boa qualidade, me pareceu a mais bem dotada financeiramente da turma.

Naquele tempo, todo dia antes do término das aulas, os alunos “ficavam em forma” para que fosse executado o Hino Nacional. Era um momento solene em que todos colocavam a mão direita espalmada sobre o coração, em respeito ao Hino e à Bandeira Nacional. Não se arrastava nem um pé no chão enquanto não terminasse aquela solenidade cívica.

Estávamos perfilados ... e mal havia começado a execução do Hino os alunos cantaram : ... “de um povo heróico, o brado, retumbante“, automaticamente olhamos uma para a outra e foi um desastre, porque não parávamos de rir, escandalosamente, atrapalhando todos aqueles que solenemente tentavam entender as palavras constantes do Hino Nacional.

Dali mesmo, em vez de voltarmos à sala de aula para, em seguida, sairmos correndo com o nosso material escolar, pela porta de saída, fomos diretamente para o gabinete da Diretora do Grupo, Dona Lídia, que ainda estava com o rosto vermelho como um pimentão maduro e com toda a sua fúria impressa no olhar, enquanto nos escoltava ia resmungando alguma coisa que não entendíamos, com o barulho da saída dos outros alunos.

Nesse momento nada cairia melhor do que rememorar uma poesia que havia decorado, embora não soubesse ler quase nada, intitulado Desabafo:

No meu semblante há traços de cansaço,

e, em minha voz, vestígios de tristeza,

porque, jungida às rédeas do fracasso,

não conservei a luz da glória acesa.

E sempre pela vida em descompasso,

lutando contra o vírus da incerteza,

faço da tênue força, força de aço,

e do ataque minha arma de defesa.

A palidez que no meu rosto aflora,

não é moléstia contraída agora,

vem desde os magros tempos de criança.

E a tristeza que a minha voz embarga,

foi-me deixando, aos poucos, mais amarga

e cada dia mais sem esperança.

Dona Lídia nos colocou uma em frente à outra, e perguntou : - vocês já se conhecem? Falamos ao mesmo tempo, como se tivéssemos ensaiado a resposta ou estivéssemos dublando um texto: - “ Não, senhora “. Então, disse ela : vão ter bastante tempo para se conhecerem porque vão ficar a tarde toda de castigo, com os joelhos em cima de caroços de milho, uma olhando para a cara da outra, sem pronunciarem uma só palavra ... - Ouviram bem o que eu disse ?

Finda a “preleção” , pediu à Maria guardiã que trouxesse o milho, o espalhou em dois lugares e sentenciou : - Maria, coloque os joelhos ali, apontando para o monte maior, e fique até às 16 h. E você, Alícia, que riu menos, se ajoelhe aqui até às 14h. E acrescentou : - garanto que vão aprender a respeitar o Hino Nacional. Novamente, nós duas falamos, ao mesmo tempo, protestando diante da crueldade do castigo aplicado pela Diretora.

Como eu era a parte fraca, pelo que pude entender, não pronunciei uma palavra a mais, enquanto Alicia, quase gritando, se levantou e disse : - eu não quero essa porcariazinha de milho enquanto a minha colega tem uma montanha embaixo dos joelhos ... nem quero ficar duas horas de castigo só porque meu pai é o dono daquela droga de cinema pulguento. Novamente, nós rimos juntas. E quase como se estivesse dando uma ordem, falou : - eu quero que o castigo dela seja igual ao meu ou o meu igual ao dela, sentenciou. E antes que Dona Lidia argumentasse qualquer coisa, Alicia, ainda protestando, curvou- se em minha direção e arrastou parte do meu milho para o seu local de castigo, dizendo : - vamos sair às 15 h, eu pago uma hora pra você.

Dona Lídia estava com a saliva quase escorrendo pelos cantos da boca de tanto ódio e só faltava tirar as calças pela cabeça, diante da rebeldia e do espírito de justiça da menina rica.

Depois, ainda com a boca quase espumando, ordenou: - você não quer justiça, Alicia ? – então vai ficar também até às 16 horas, está ouvindo, sua falsa justiceira ? E saiu soltando fumaça pelas ventas.

Dona Lídia voltou às duas horas e autorizou a saída do castigo imposto às duas alunas, depois de fazer uma preleção sobre educação, civismo e respeito aos símbolos nacionais, ameaçando impor um castigo maior se o mesmo episódio se repetisse.

E Maria, mais uma vez, se lembrou de uma poesia cuja autora desconhecia:

Desventura

Sinto que a desventura, em passos lentos,

segue os meus passos pela vida afora.

Não sei se quer mudar meus sentimentos,

ou se quer dispersar sonhos de outrora ...

Sonhos de ter a vida, os pensamentos,

inflados de ilusões e, ainda agora,

meu desejo é gritar aos quatro ventos

que a solidão castiga e me apavora.

Que transforma em veredas meus caminhos,

que, em vez de rosas, vou colhendo espinhos,

que os mais alegres dias são tristonhos,

porque afogada em minhas desventuras,

sou mais uma, das muitas criaturas,

que Deus enriqueceu tão-só de sonhos !

Alícia e Maria se tornaram amigas, e até o final do curso primário, quando se encontravam, Alícia, que tinha poder aquisitivo suficiente para freqüentar uma escola particular, se fosse preciso, perguntava : - Olá, como está, amiga ? - E a dona “Retumbante” como tem tratado você ? È claro que Dona Lídia não ia guardar rancor por uma bobagem de criança...

Muitos anos se passaram. Alícia se transformou numa médica de renome nacional, e Maria, por seu senso de justiça,e muito esforço, aderiu à magistratura, onde exerce sua função, meritoriamente.

Embora as duas tenham feito amizade num momento injusto, o castigo serviu para aproximar dois mundos diferentes e o Destino comprovou que, muitas vezes, “ Deus, realmente, escreve certo por linhas tortas”...

Maria Nascimento Santos Carvalho

Maria Nascimento
Enviado por Maria Nascimento em 05/12/2008
Código do texto: T1319650