UM NATAL DIFERENTE

Em nossa modesta casa, o Natal sempre foi esperado com um carinho todo especial, não só porque fazemos parte de uma família muito católica, mas, também, porque meu pai e eu nascemos no mês de dezembro, que já é, naturalmente, um mês festivo.

Como a nossa situação financeira nunca nos permitiu fazer festa de aniversário, minha mãe, às vésperas do Natal já estava tentando improvisar uma modesta comemoração, à base de bolos caseiros, tapiocas, rocamboles, doces e refrescos das frutas de época, sem nunca se esquecer do seu famoso arroz doce, que, segundo a vizinhança, era o mais gostoso que alguém poderia fazer... E era mesmo. Minha mãe se aplicava muito na cozinha para agradar meu pai e a sua numerosa prole.

Meu pai aniversariava no dia 18 de dezembro, no dia de Nossa Senhora do Amparo, que lhe emprestou o nome para melhor compor o nome simples de sua família.

Eu, a terceira filha do casal, nasci no dia 25 de dezembro, quando era celebrada a Missa do Galo, iniciada sempre a zero hora do dia de Natal. Por isso, a dupla "comemoração" sempre ocorreu no meu aniversário. Aliás, os demais aniversários geralmente obedeciam o mesmo esquema, uma vez que minha mãe, sem o menor planejamento, costumava ter mais de um filho em determinadas datas, em anos completamente diferentes, como por exemplo: dois filhos do dia 30 de outubro, três de 15 de agosto, dois de 29 de julho, dois no mês de junho, e de seus dezessete filhos somente eu nasci sozinha num mês, que intitulavam de "o Grande Dia". No ano em que eu completei treze anos, todos os esforços foram feitos para que eu e meu pai tivéssemos uma comemoração de verdade, pois eu estava me diplomando no " Curso Primário" e meu pai completando 40 anos de vida e muito mais de trabalho.

Além das guloseimas natalinas tradicionais, minha mãe não deixou que faltasse nada, inclusive uma bacalhoada, cujo cheiro se espalhava por todos os lados causando comentários elogiosos dos vizinhos mais próximos.

Estava tudo sob controle... Os quitutes cuidadosamente acondicionados e enfileirados no fogão de alvenaria para que fossem devorados quando voltássemos da Missa do Galo.

Eu estava sorrindo para as folhas, para o vento, para as nuvens, para a Natureza, para o mundo inteiro porque, finalmente, comemorava condignamente o meu aniversário e o do meu pai, que me parecia mais importante, porque era meu pai e nunca havia tido oportunidade de festejar o seu dia.

Antes que se aproximasse a meia noite, enfileiraram as oito filhas, que formavam uma escadinha, rumo à Igreja de Nossa Senhora da Conceição onde se realizaria a Missa.

Terminada a cerimônia religiosa, meus pais, já cansados da luta do dia a dia, tiveram um trabalho enorme porque minhas irmãs mais moças estavam sonolentas e mal se sustentavam de pé, o que aumentou a labuta do nosso herói aniversariante.

Enfim, chegamos em casa aos trancos e aos barrancos... As roupas amarrotadas, os pés doloridos e alguns descalços, crianças cochilando, outras chorando, uma confusão que dava pena ver.

Em nossa casa reinava um silêncio alucinante que chegava a incomodar os nossos ouvidos. Não se ouvia nem a cantiga dos grilos afeitos às badernas noturnas.

Meu pai se assustou com aquele silêncio amedrontador e foi o primeiro a falar como se estivesse contando um segredo de Estado... Como se não quisesse ouvir sua própria voz, antes de abrir a porta disse: - eu não sei o que está acontecendo, mas o que quer que seja, não é uma coisa boa.

- Eu nunca escutei um silêncio tão triste na minha vida, meu Deus... Este silêncio me corta o coração.

Minha mãe procurou tranqüilizá-lo, dizendo: - homem, sossegue... O que pode ter acontecido de tão tenebroso se saímos de casa há menos de três horas? Mas a tensão era tanta que até nós, as crianças, ficamos contaminadas pelo receio dos nossos pais.

Descontrolada pelo nervosismo do meu pai, a chave parecia não ser da mesma porta, se negava a entrar na fechadura, e quando entrou ficou ziguezagueando como se estivesse pequena demais para ocupar o espaço. Depois, em segundos que nos pareceram uma eternidade, meu pai conseguiu, finalmente, abrir a porta, e nos jogamos desordenadamente ao encontro da sala, onde também imperava aquele silêncio amedrontador.

Num gesto de impaciência e preocupação papai escancarou a janela que dava para o quintal, desenhado pelas sombras dos arvoredos que o ladeavam e dos pés de fruta-pão copados e de folhas largas e enrugadas como as patas dos dinossauros, como se quisesse desvendar o mistério que pairava no ar, enquanto minha mãe tentava lhe entregar a lanterna usada sempre que alguma coisa estranha acontecia.

Nada pareceria anormal, se não fosse a ausência de Lidon, o nosso cão de estimação, que estava sempre alerta ao menor ruído e, como se fosse o chefe da família, vigiava a casa, o quintal, as crianças, tudo enfim.

Lidon veio parar em nossa casa com uma semana de idade quando sua mãe, uma cadela de costumes refinados, morreu atropelada por um "jipe" dirigido por vândalos, e herdara dela quase todas as características. Era o cão que todos aqueles que apreciam os animais gostaria de hospedar: educado, carinhoso, sensível, mas um herói na defesa de seus donos.

Apreensivo e com voz quase trêmula, meu pai chamava Lidon... Assobiava do modo costumeiro e nenhum sinal ... E ele continuava com o olhar perdido como se tentasse fotografar visualmente o imenso espaço vazio.

De repente, correu a vista em volta da porta da cozinha e lá estava o Lidon como se dormisse um sono profundo, enquanto a angústia tomava conta dos adultos e das crianças que já entendiam de amor e de dor...

Meu pai abriu a porta apressado, como se precisasse socorrer um filho e ajoelhou-se bem próximo à cabeça do animal que respirava com muita dificuldade e nem se dava conta do nosso sofrimento e conversava com ele... e fazia perguntas como se acreditasse que haveria alguma resposta. Depois, mais calmo, como se entendesse de veterinária, colocou um tecido embebido de álcool próximo ao "nariz" do cachorro, passou-lhe um pano molhado no pêlo vasto e desembaraçado, envolveu-o num lençol e saiu alucinado tentando alugar uma viatura para levar o Lidon a uma cidade mais adiantada onde pudesse receber um "tratamento milagroso"...

Àquelas alturas, ninguém estava se lembrando das iguarias preparadas caprichosamente pela minha mãe, embora todos estivessem com o estômago dando um nó. Umas crianças acabaram dormindo com fome, outras estavam tentando se manter em pé, como se dependesse delas a vida do Lidon.

Depois de muita luta, meu pai conseguiu um carro velho, quase caindo os pedaços, e um motorista movido a cachaça para levar o Lidon, a primeira vez de sua vida, a uma "cidade grande", em busca de socorro.

Imaginem o que deveria ser encontrar alguém que entendesse muito de cachorro, numa Noite de Natal. Além do que, meu pai só possuía o dinheirinho contado para as despesas da casa, assim mesmo já desfalcado pelos exageros das iguarias preparadas para a comemoração do nosso aniversário... E que comemoração

O carro velho saiu deixando uma nuvem rasteira de fumaça preta e mal cheirosa, levando a nossa esperança... levando o Lidon todo empacotado como um embrulho de presente, respirando com dificuldade, tentando sobreviver, enquanto nós ficamos na calçada observando o carro sumir na poeira, numa viagem que não prometia grande sucesso. Nesse momento, movida pelos acontecimentos, não pude deixar de demonstrar a minha

Descrença...

Não tenho a mesma crença do passado

e a tudo assisto com indiferença,

porque meu coração já destroçado

cansou de dar abrigo à minha crença.

Pois, sendo vida afora injustiçado,

desiludido, em sua dor imensa,

meu coração, pondo a razão de lado,

não quis mais esconder sua descrença.

Mas eu que, ingenuamente, em tudo cria,

separando o real da fantasia,

vi quanto a fantasia me enganou ...

Finda a crença que eu tive desde criança,

vi ruir meu castelo de esperança,

e tudo mais, em mim, desmoronou ...

Minha mãe ficou desarvorada e, como sempre acontecia quando estava nervosa, começou com um enjôo danado, o que prenunciava a enxaqueca braba que costumava ter.

Sem tomar conhecimento de mais nada, mamãe trancou-se no quarto escuro para ver se melhorava e, além do enjôo, veio a dor de cabeça e todos os demais sintomas da mazela que a deixava acamada, impaciente e sem a menor condição de administrar a casa e tomar conta da filharada.

Nós, as filhas mais velhas, passamos o resto da noite em claro tomando o refresco que minha mãe havia preparado antes de sairmos para a Missa.

Pela manhã minha mãe ainda estava prostrada na cama esperando notícias do meu pai e do Lidon. O tempo demorava a passar... O refresco ficara aguado e perdemos a vontade de experimentar as guloseimas. Só queríamos que o nosso pai voltasse, mesmo que o Lidon ainda não tivesse ficado bom.

Minhas irmãs pequenas despertaram e com elas despertaram também outros problemas... Queriam tomar o mingau costumeiro, mas a nossa mãe não nos ensinara a fazê-lo. Calu, irmã mais velha sabia, mas estava muito nervosa... E quando estava nervosa ficava mais rebelde ainda. Já estava namorando, mas se comportava como uma garota sem juízo. No meio do "chororô" das crianças colocou uma bermuda e subiu na primeira mangueira que encontrou, como fazia quando estava ameaçada de levar umas chinelada dos meus pais.

Nossa avó materna chegou para nos prestar um auxílio, mas tudo o que fez foi criticar a maneira como fomos criadas... Dizia ela: - Como podem umas "moças casamenteiras" não saber nem cuidar das irmãs pequenas?

- Como podem ficar sem comer porque não sabem nem fazer um café? - Como podem? – Calu, desça já dessa mangueira... – Telma, vá pegar água na cacimba... – Maria, veja se sua mãe está precisando de algum remédio!!! Que dia!!!

Todas nós obedecíamos, menos Calu, que não arredava pé de um galho forte da mangueira.

De volta da cacimba, Telma deu banho na "menorzinha", que apenas engatinhava, colocou as fraldas, pôs uma toalha de banho esticada numa sombra fresquinha embaixo do pé de fruta-pão e deixou a guria sentada, enquanto minha avó fazia "sermão" na cozinha, exaltando a nossa inabilidade.

Eu me irritei com todos os defeitos que minha avó encontrava para nos torturar mais ainda e, sem que ninguém notasse, coloquei uma esteira embaixo do coqueiro anão, me deitei rezando para que meu pai retornasse logo e depois me fingi de morta... Eu estava muito decepcionada e queria mais que o mundo se acabasse para que eu não pudesse ver mais nunca aquele sofrimento estampado no rosto do meu pai.

Minutos depois, que pareceram eternos, ouvi um grito e mais um e mais um e uma infinidade de gritos, levantei-me num pulo e vi minha irmãzinha engatinhando apressada, como se estivesse dizendo alguma coisa, feliz da vida, tentando, alcançar uma cobra coral saída não sei de onde.

Calu desceu apressada da mangueira, Telma apareceu com uma vassoura, eu joguei a esteira em cima da cobra, depois segurei minha irmãzinha que chorava assustada com a gritaria. A cobra deixou a esteira para trás e foi se esconder na touceira de bananeiras e minha avó, que já parecia mais calma, voltou a se queixar como se fôssemos responsáveis pelo aparecimento da serpente.

Já passava das quinze horas quando minha mãe se levantou de vez para tentar pôr ordem na casa. A cozinha estava quase como havia ficado na véspera, à noite... As guloseimas todas arrumadas em nosso fogão enorme, de alvenaria. As panelas cobertas com suas devidas tampas e com um pano de prato limpinho, que dava um toque de festa. Os vasilhames de refresco e os copos espalhados na mesa, e o que estava no fogão intacto, intacto iria ficar até a chegada do meu pai. Minha mãe inspirava poesia.

Mãe Marina

Mamãe, quando retorno ao meu passado

tão rico de pobreza e de esperança,

imagino que estou ainda ao teu lado,

e volte a me sentir em segurança...

E projetando tudo na lembrança

vejo que, se houve sonho malogrado,

o amor que recebi desde criança

evitou que eu tivesse fracassado.

És milagrosa, Santa Mãe Marina,

uma estrela radiosa, a luz divina

que enfeita meus caminhos e me guia,

pois quando fico triste, em pensamento

chego aonde estás e abrandas meu tormento,

minha Nossa Senhora da Alegria !

Já estava quase escurecendo quando ouvimos o barulho da "baratinha", o "jipe" em que meu pai viajara. Parecia que estavam caindo os seus pedaços. Por isso, talvez, ela andasse devagar, quase parando... O barulho era ouvido de longe, e ficamos na calçada aguardando a sua chegada. Quando a viatura parou, meu pai se aproximou da porta trazendo o que nos parecia um embrulho de presente: o Lidon.

Pelo ar de tristeza do meu pai já dava para perceber que sua viagem à cidade grande não havia tido nenhum sucesso. Ele nem parecia que havia completado quarenta anos há uma semana... Voltara cabisbaixo, envelhecido e desencantado, depois de ter passado tantas horas sem se alimenta e sem motivos para comemorar o nosso aniversário.

Sem dizer uma só palavra atravessou a casa, colocando o seu pacote no quintal e baixinho, como se fizesse segredo, falou para a minha mãe porque não puderam salvar o cão: - ele foi picado por uma serpente venenosa, disse ele, temendo nos assustar. Sem mais palavras segurou novamente o seu embrulho e o levou para o fundo do quintal, onde seria sepultado.

Depois de tudo, meu pai, ainda sem entender o que havia acontecido, tão repentinamente, debruçou a cabeça na mesa da cozinha e chorou... Chorou todas as lágrimas que tinha para chorar e depois, sentindo que seu estômago não aceitaria qualquer alimentação, tomou banho e sentou-se na espreguiçadeira para pensar mais um pouco na vida e no que a vida havia aprontado com ele.

Mamãe, ainda meio tonta, preparou um café forte e disse que era para espantar o sono do meu pai, que estava exausto. Mas a minha mãe não poderia deixá-lo dormir sem tomar conhecimento de que havia uma cobra nas bananeiras que poderia atacar uma pessoa ou um animal a qualquer momento. E foi direto ao assunto.

Sem parar para respirar, contou a história com mais um detalhe inventado pela Calu, que era especializada em aumentar tudo o que via e o que ouvia.

Em sua narrativa, minha irmã caçula não tinha saído engatinhando atrás da cobra e sim havia sido vista segurando a cobra com as duas mãos, enquanto a serpente se contorcia toda buscando fugir e, por milagre, não tinha picado a menina, o que deixou meu pai mais preocupado.

Não era a primeira vez que uma serpente invadia o nosso quintal e depois de nos assustar se escondia no primeiro lugar disponível que encontrava. Meu pai, como sempre fazia, pegou um chifre de vaca no armário, raspou uma boa quantidade dele, colocou numa telha de olaria com brasas e saiu cuidadosamente para deixar o chifre queimando próximo às bananeiras, enquanto observava o que poderia acontecer.

Não se passou muito tempo e apareceu toda se rebolando a tal da cobra coral que parecia sonolenta, pesada e mal humorada. Já de posse de um pedaço de madeira, meu pai acertou a serpente que ficou com a cauda balançando e se esforçando para se arrastar para não sei onde.

O chifre continuou queimando e fazendo uma fumaceira infernal com cheiro de breu e outras substâncias enjoativas.

De repente, quando tudo parecia tranqüilo, meu pai ouviu um barulho característico vindo da touceira de bananeiras e viu sair de lá outra cobra coral mais esperta que a primeira, como se quisesse afrontar a quem dela se aproximasse , mas meu pai estava de prontidão e logo a deixou inerte sobre o chão.

E agora, seu Amparo, depois de tantos percalços, o que faltará acontecer? Nada pior do que já havia acontecido, com certeza...Depois de enterrar também as cobras, meu pai que estava sem se alimentar há quase vinte e quatro horas, parecia mais magro e envelhecido...

Sua barba havia crescido, o que lhe dava um aspecto de doente e maltratado, mas ele não encontrava ânimo para melhorar a sua fisionomia, nem para querer parecer mais moço; apenas pensava num banho que lhe lavasse até a alma. E, pela primeira vez, meu pai colocou água para aquecer para um banho mais reparador. Do banho foi direto para a cama e dormiu como uma pedra. Parecia que estava anestesiado.

No dia seguinte, 26 de dezembro, pela manhã, já "curada" até a próxima enxaqueca, minha mãe foi verificar o que restara dos quitutes que havia feito para a nossa Ceia de Natal. Estava tudo coberto do jeito que ela deixou , o que a assustou. Pensara que durante a sua enfermidade tudo havia sido devorado e quase sentiu remorsos por ter adoecido.

Antes que minha mãe examinasse as condições dos alimentos, Calu, já querendo levar vantagem da situação, foi, como sempre, inventando umas estórias malucas para convencê-la de que havia cuidado bem das irmãs... Disse até que havia gasto o dinheiro que ia comprar seu par de meias soquetes em lanches mirabolantes, dos quais ninguém viu a cor. Inventou a compra de tanta coisa que nem o valor de dez pares de meias daria para comprar tudo aquilo, mas minha mãe, conhecendo a filha que tinha, falou severamente: - então, Carolina, você vai ficar sem meias até que seu pai possa comprar, pois "todas as nossas economias" foram enterradas com o Lidon.

Foi aí que minha irmã de sete anos, a Aurelina, perguntou: - que é "conomia", mamãe? E mamãe disse: - é dinheiro... E, inocentemente, Aurelina disse: por que não tira o Lidon do buraco para tirar a "conomia" da gente da barriga dele.

Foi a primeira vez que minha mãe sorriu de verdade depois que chegamos da Missa do Galo, achando graça na ingenuidade da minha irmã.

Sem perder mais tempo minha mãe foi destampando as panelas e tirando as folhas de bananeira aquecidas anteriormente, que cobriam os tabuleiros de bolos, rocamboles, tapiocas etc. que nos aguardavam desde a véspera do Natal. Minha mãe estava cercada de crianças curiosas para saber se já podiam começar a comer tudo aquilo que ocupava quase todo o nosso imenso fogão de alvenaria.

Ao destampar a primeira panela, já dava para ver, pela fisionomia de minha mãe, que alguma coisa estava errada. Mas, apesar do seu desapontamento, ela permaneceu calada, examinando as panelas uma por uma, fechando-as imediatamente para que o mau cheiro não empesteasse a nossa casa simples, mas bem cuidada.

Depois de examinar tudo, minha mãe, desanimada, sentou-se no primeiro banco da cozinha que encontrou... Colocou as duas mãos cobrindo as orelhas como se se negasse a ouvir qualquer pergunta das filhas curiosas...

E, num gesto de revolta, disse quase gritando: - Diabos, só me faltava isto! Isto o que? Perguntei afoita como se pudesse resolver o problema. E minha mãe falou baixinho, como se não quisesse que meu pai, que dormia como um pedra, ouvisse o que ela tinha a dizer: - Vamos ter um novo sepultamento... E novamente minha irmãzinha perguntou: agora quem vai morrer? E mamãe disse: não vai morrer ninguém porque ninguém vai comer nada daqui: está tudo estragado. Vamos fazer um grande buraco no quintal para enterrar tudo isto...

Pela terceira vez, em menos de 24 horas, era aberto um buraco no mesmo quintal. Cada uma de nós usava o que podia para ajudar minha mãe a cavar terra até conseguir espaço para jogar fora todo o dinheiro que meu pai tinha gasto, sem poder, para nos oferecer uma " grande " Festa de Aniversário em família.

Após tudo ter sido enterrado, foi a minha vez de chorar... Sentei-me recostada no coqueiro anão, meu refúgio preferido, e chorei até secar todas as lágrimas. Meus olhos já estavam secos e eu continuava chorando por dentro... E, como se o coqueiro pudesse me entender, eu comecei a conversar com ele, contando o sacrifício que meu pai havia feito para comemorar, em família, o nosso aniversário e o recebimento do meu Diploma de término do Curso Primário. Apesar de já haver completado na véspera 13 anos de idade, eu nem me dava conta de que o coqueiro não podia me ouvir e dizia baixinho:- Meu pai é o melhor pai do mundo... Ele até mentiu dizendo que ia comemorar também o seu aniversário para que eu não me sentisse culpada por estar gastando o que não podia.

Sentindo a minha falta, mamãe veio andando em direção ao coqueiro, mas só ouvi seus passos quando ela me perguntou: - Maria, você está falando com quem? Eu me assustei porque naquele momento, esgotadas as lágrimas, eu estava blasfemando, perguntando a Deus por que havia feito tudo aquilo com o meu pai. Por que nos tinha feito tanto mal se tínhamos rezado tanto na Missa do Galo ? Se ele faria aquilo com o Pai dele, proferindo depois uns insultos que hoje me recusaria a revelar...

De manhã, quando acordei depois de um sono intranqüilo, cheio de pesadelos, meu pai já havia saído para a lida, pois trabalhava de sol a sol e via o dia nascer e morrer todos os dias.

Volta -e- meia eu me pegava pensando se meu pai estava se alimentando direito, como seria o seu primeiro dia de trabalho sem o Lidon fazendo festa em sua volta ou espantando heroicamente as cobras e outros animais perigosos que se aproximavam... se estava chorando novamente a perda do seu cão de guarda, enfim, eu estava tentando adivinhar o que estava acontecendo com ele, como se pudesse protegê-lo e consolá-lo mesmo a distância.

Como se adivinhasse os meus pensamentos, logo que chegou meu pai me chamou para a calçada, onde costumávamos ficar conversando à noite, e me pediu milhões de desculpas pelo que havia acontecido , como se tivesse culpa de alguma coisa... Disse como se sentiu na viagem à cidade grande, como havia sido o seu dia no trabalho e ressaltando a segurança que o Lidon trazia para todos nós, disse que se sentia como se tivesse perdido um filho, o filho que minha mãe ainda não havia gerado. Eu já estou velho, disse ele, nunca tive uma festa de aniversário, mas também não tenho de que me queixar porque já ganhei muitos presentes na vida, as minhas nove mulheres (vocês), mas você ainda vai ter muitos Natais para comemorar o seu aniversário e eu sempre vou estar por perto, não importa onde imaginem que eu possa estar.

Ao Meu Pai

Se não foste, meu pai, o mais perfeito

pai do mundo, ainda assim te condecoro.

Vejo-te isento de qualquer defeito,

dizendo, em prece a Deus, quanto te adoro ...

Porque sei que a maldade e o preconceito

fecharam teus caminhos — e o deploro:

trocaram a alegria do teu peito

pela tristeza que, ao lembrar, eu choro.

Mas, após tua eterna despedida,

percebendo que em toda a tua vida

tiveste tão-somente desenganos,

há de Deus aplacar-te as cicatrizes,

pois sabe que as pessoas infelizes

se tornam tristes ao passar dos anos !...

Onze anos depois meu pai faleceu sem ter tido oportunidade de comemorar o seu aniversário nem o meu... Mas, apesar de os meus Natais parecerem sempre muito tristes, imaginariamente sinto a presença amiga do meu pai como se fosse um grande presente de aniversário e agradeço a Deus por acreditar que o nosso laço familiar é tão forte que jamais poderá se desatar e por me conceder, embora imaginariamente, a graça de transformar todo dia em Dia de Natal, o dia do meu aniversário... 25 de Dezembro !

Maria Nascimento Santos Carvalho

Maria Nascimento
Enviado por Maria Nascimento em 15/12/2008
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