O Moedor de Café

Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão.

Isto vem de longa data; lembro-me de quando eu era criança e, na casa de amigos, na hora do lanchinho da tarde, as mães deles preparavam a mesa e nos serviam, e da minha cara quando elas enchiam meu copo com café.

— Não toma?

E eu negava com a cabeça. Então, elas rapidamente trocavam meu copo por um outro, enchiam-no com leite e novamente aquela expressão de repulsa na minha cara.

— Também não toma?

— Só com Nescau — eu respondia, o que as forçava a procurar no fundo de algum armário, resmungando, por aquele pote de Nescau ou Toddy já vencido de tão velho.

Este fato também me trazia embaraços durante o tempo que morei na Europa. Toda vez que eu recusava uma xícara de café colombiano — dizem que é excelente — ou um cappuccino, imediatamente fulminavam-me com os olhos, como se eu houvesse proferido alguma heresia e o papa Bento XVI estivesse prestes a me excomungar por isto.

— Não gosto, porra, simples assim!

— Brasileiro que não gosta de café não existe — retrucavam.

“Eu existo, logo brasileiro que não gosta de café também”, lógica elementar.

No entanto, paradoxalmente, um dos meus grandes prazeres quando eu contava uns dez anos era, nas férias, ao irmos para a casa de minha vó no interior, moer café.

Talvez você nunca tenha visto um antigo moedor de café na vida, eu mesmo não o teria se não fosse por causa destas viagens, mas o princípio é simples: é um aparelho de ferro, fixo numa mesa, com uma entrada no topo semelhante a um funil, uma manivela que aciona uma roda para triturar o café torrado, e uma abertura no fundo, de onde se recolhe o pó.

Então, toda vez que minha vó perguntava:

— Quem quer moer o café?

Eu logo erguia a mão, apanhava o bocado de grãos torrados e corria para um galpão atrás da casa, onde ficava o moedor. Meus primos e primas se deliciavam com este período de folga, pois para eles esta atividade era obrigação diária, portanto, a minha presença lá os imiscuía dela por um breve período.

E era neste mesmo depósito que ficavam armazenadas sacas e mais sacas de café, cuja existência nunca compreendi. Não sabia se eram para ser revendidas, ou apenas para consumo próprio, mesmo que fosse impossível para uma única família beber tanto café na vida.

Sozinho naquele depósito sujo, úmido, escuro, cheio de teias de aranha e, pelo que meus primos me diziam, de onde era muito fácil sair apinhado de piolhos, eu girava a manivela, imerso no cheiro de café torrado que subia do moedor.

Este divertimento perdurou até uns treze anos, mas depois disto, eu só continuei perfazendo-o porque não conseguia contrariar minha avó que, ao abrir um sorrisão que quase arremessava sua dentadura pra fora, perguntava, fitando-me:

— Quem quer moer o café?

E já antecipando minha resposta, ela me estendia o saco de café e, constrangido, eu me via forçado a ir para o galpão moê-lo, não sem antes ouvir os risinhos dos primos e os cochichos:

— Se ferrou!

Mas este depósito representaria mais para mim do que um mero prazer tornado martírio.

Era aniversário de quatorze anos dum dos primos e toda a vizinhança foi convidada para a casa da minha vó. Não era exatamente uma superprodução de festa; minha vó sempre foi muito humilde — apesar de eu ter ouvido que ela tinha umas quinhentas cabeças de gado pastando numa de suas fazendas —, por isto ela fazia questão de que tudo fosse muito simples.

As minhas tias assumiam o papel de quituteiras, enrolando brigadeiros, beijinhos e fritando um punhado de coxinhas. Minha mãe, que não tinha talento algum para a cozinha, organizava a piazada para os preparativos: encher bexigas, arrumar as mesas no quintal, enxotava os menorzinhos que filavam uns docinhos, ou mandava as primas para o banho. Meu primo, que já emanava ares de adultos — um ralo bigode e, segundo ele, um razoável chumaço de pentelhos —, achava toda aquela balbúrdia ridícula.

— Pô, mãe, eu não sou mais criança! Pra que bexiga?

Uma das provas de que ele não se sentia mais criança podia ser encontrada nas convidadas; logo avistamos uma revoada de meninas chegando pela rua, vindo em direção à casa de minha vó.

A presença de garotas, ainda mais garotas de nossa idade, atiçou toda a molecada.

— É hoje que vou me dar bem! — cada um dizia para si, mesmo que muitos não tivessem coragem de se aproximarem delas. Por outro lado, eu ainda me sentia o mais inexperiente de todos ali, apesar de ser um pouco mais velho do que eles. Quase todos os meus primos já haviam perdido a virgindade, alguns com menininhas do sítio, outros com putas mesmo, encorajados por seus pais. Apenas os mais novos, menores de doze anos, e eu é que ainda estávamos na fila para sermos descabaçados.

O aniversariante veio até mim e me disse:

— Está vendo aquela ali? Diz que viu você na missa ontem. Vai lá, rapaz, que ela é facinha.

— Sério?

— Sim. Todo mundo já traçou a Rafinha. É só chegar que ela dá.

E esta última frase foi fatal para mim. Minhas pernas começaram a tremer e eu fiquei tão aterrorizado de que aquela noite poderia ser a minha vez, que eu passei a vagar pelos cantos da festa, só me expondo para ir catar uns salgadinhos.

Foi numa destas oportunidades que Rafinha me abordou.

— Oi? — ela molhou os lábios e mexeu no cabelo.

Não me lembro o que respondi, mas gaguejei e ela riu.

— Você é tão bonitinho — ela disse.

Quando percebi, já nos atracávamos atrás duma árvore no quintal. Eu não era o rapaz mais experiente do mundo, mas já havia pegado nuns peitinhos antes. No entanto, logo estes meus poucos truques se esgotaram. Eu estava muito excitado, mas não tinha muita certeza de até onde poderia ir.

Novamente, a iniciativa foi de Rafinha:

— Vamos pr’um lugar mais calmo?

E, num reflexo, pensei no depósito: lugar mais calmo não havia.

Foi naquele canto escuro, úmido, teias de aranhas — quiçá, piolhos! —, atrás das sacas de café, que meu suor se misturou com o de Rafinha, que pela primeira vez me senti dentro duma mulher.

Há momentos que mudam a vida duma pessoa: de alguns deles não nos lembramos, nem temos como: a data de nosso nascimento, nossas primeiras palavras ditas, a primeira vez que nos espantamos diante do nascer do sol, e talvez o dia de nossa morte, pois não sabemos se há algo para além ou se é meramente o fim; mas há também aqueles inesquecíveis: o primeiro dia na escola, aquele Natal no qual descobrimos que Papai Noel não existe, o dia em que passamos no vestibular, a aquisição do primeiro carro, o nascimento dos filhos, a morte de nossos pais... Eu e Rafinha, corpos nus entrelaçados, é uma destas lembranças.

Eu me apaixonei por ela, adoeci de amor. Voltei para minha cidade e tudo me trazia a memória daquela noite. Ao chegar em casa, depois da aula, eu me jogava na cama, punha um CD de Johnny Rivers, e sonhava acordado, angustiado, aborrecido, oprimido pela saudade. À noite, antes de dormir, o desejo me consumia. As horas se arrastavam. Tinha de acordar cedo e o relógio na cabeceira indicava três horas da manhã. Batia uma punheta assistindo aqueles filmes eróticos da madrugada e, por mais aquele dia, eu vivia sem Rafinha.

O passar dos meses foi uma eternidade. Só retornaria à casa de minha avó para as férias do fim de ano. De julho a dezembro, um, dois, três, quatro meses. Mas o tempo simplesmente havia parado e, no meu peito, uma paixão como eu nunca sentira antes.

Minha mãe comprou as passagens de ônibus e pude respirar aliviado, faltavam apenas mais alguns dias.

Chegamos à minha vó de manhã bem cedo. Todos acordaram para nos receber, como era de praxe. Vovó preparou um café para a gente, leite com Nescau pra mim, é óbvio! Meus primos também despertaram, olhos cheios de remelas e marcas de travesseiro no rosto. Puxei um deles pelo braço até o quarto e perguntei:

— E Rafinha, como ela está?

— Bem... acho.

— Eu preciso ver aquela menina de novo.

— Sai desta, rapaz, ela já deu pra você. Cata outra.

Mas eu não queria outra. Meu primo me tranqüilizou: comemoraríamos o aniversário duma das primas e Rafinha também viria. O repeteco prometia ser bom.

A festa foi organizada, a mesma baderna de antes, criançada correndo pela casa, bexigas infladas e o cheiro de fritura. Os convidados chegaram.

Contudo, tudo estava diferente.

Rafinha sequer olhava para mim. Eu forçava um encontro, aproximava-me, mas era como se eu houvesse me tornado o homem-invisível.

— Deixa disso — me disseram — ela é só uma piranhazinha.

Então, eu não a vi mais. Perguntei aos primos e primas, mas ninguém sabia onde ela estava. Fui até atrás da mesma árvore em que estivemos, e nada. Decidi arriscar, por fim, o depósito.

Ouvi alguns ruídos vindos de dentro, gemidos abafados.

Estendi o braço e gentilmente entreabri a porta. Pela fresta, pude ver Rafinha sentada sobre o balcão do moedor de café, vestido erguido até a cintura, calcinha arriada até os tornozelos, e no meio de suas pernas, um homem com a bunda exposta.

Dei um passo adiante e terminei de abrir a porta. O ranger fez com que ambos olhassem em minha direção. O olhar do homem pousou sobre mim, num misto de espanto, raiva e excitação.

— Tio? — perguntei, e antes que eu pudesse ter qualquer reação, ele abandonou Rafinha com as pernas arreganhadas e veio com a benga balançando até mim. Segurou-me com força pelo braço, fechou a porta e me jogou contra a parede.

— Você não vai contar nada pra sua tia, moleque, senão eu te mato. Te mato!

Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão. Nunca gostei. Quando criança chegava a passar vergonha por causa disto na casa de amigos. Mas não era nojo, só não gostava. Mas hoje, toda vez que passo na frente dum boteco e vejo aquele líquido preto escorrendo do bule, fumegando, e o cheiro me alcança, não posso evitar de pensar em mim, em Rafinha, em sacas de café, no pau meio mole de meu tio e num moedor de café.

Não consigo.

Não dá.