Comandante- O Menino de Rua

Ele chegou sem pedir licença, como se tivesse todo direito de estar ali. Sujo, rasgado, pés descalços, uma linguagem que mais parecia um dialeto só compreendido entre os que vivem na mesma situação.

Veio para que fizessem um serviço nos seus cabelos. Nenhum aluno queria chegar perto. Por medo ou por nojo, todos inventavam uma razão para não realizar o serviço.

Não veio só. Com ele estava um número grande espalhado pela sala, com olhar inquieto a procura de algo para pegar. Precisavam obter alguma coisa para sustentar o vício de cheirar cola. Todos agiam de uma forma insana, assustadora. Ele não. Ele era diferente.

Chegou com aquele sorrisinho moleque, todo cheio de ginga e conquistou pela maneira singular de ser.

Os alunos temerosos agarravam suas bolsas, e esforçavam-se para aparentarem uma naturalidade que não sentiam. Ele percebendo a situação foi logo dizendo: Num precisa ter medo. Ninguém vai mexer ninguém! Olhou em volta, e com um simples gesto fez cada garoto ir para um único lugar e ali aguardarem o chamado. Causou admiração. Não levantou a voz, nem fechou o semblante. Na hora deu para perceber quem era o chefe. Demos-lhe um nome: O Comandante.

Ganhou a confiança de todos e dali em diante alguns alunos aceitavam fazer o serviço pelo qual os meninos de rua buscavam.

Uma coisa era necessária: ter estômago de aço para suportar o odor. Nem todos agüentavam, na maioria das vezes, alguns saiam para tomar ar lá fora, pois o ambiente ficava impregnado.

O número foi aumentando. Cada aula, ele trazia mais companheiros de rua. Fazia propaganda do serviço e ai do menino que reclamasse. Ali ninguém podia chamar palavrão, nem se mexer podia. Tinham que virar estátua. O Comandante ditava e fazia acontecer.

Passou um tempo sem aparecer. Ficamos preocupados. Pois ele já havia comentado que planejavam assaltar um supermercado. E aconselhamos para que saíssem dessa vida. Mostramos as dificuldades que teriam em cumprir os projetos que na inocência diziam para todos ouvir. É que os que não faziam parte do grupo moravam perto do supermercado, tinham parentes ou conheciam alguém que trabalhava lá. Com certeza falariam o que tinham escutado e a segurança seria reforçada. Seria uma loucura na certa. Eles riam. E um dentre eles, falou:

_Que nada Dona, nós conhece o massête, e vamo consegui entrar feito gato.

_Meu filho, está errado isso que vocês estão planejando. Saiam dessa vida. Por que entraram nessa situação? Deixem a cola, voltem pra casa.

Eles rindo, disseram numa só voz:

_ Não dá mais pra volta. Vamo morrê nessa vida memo.

_E os pais de vocês, o que dizem? Onde estão?

Um falou:

_Meu pai ta preso no Aniba Bluno.

Esse é o nome de um grande presídio. A professora conhecia o ambiente que ele citava, pois já tinha realizado um trabalho lá. E sabia que o ambiente era infernal.

_E o meu Tchia, tá debaxo da terra. Levou um balaço na testa e se foi. Minha mãe tá na vida. Deixou eu e meus imãos morando com minha vó. Tenho treze imãos e todo eles tá na droga, robando e matando.

_O meu pai e minha mãe também usa cola, veniz, tinta, acetona, emalte e tudo mais que dá doidêra.

_ Não tenho pai.Não sei quem foi meu pai. Minha mãe é uma p....Na hora que ia completar a palavra levou um cascudo do Comandante. Pediu desculpas e foi pra fora.

_Entrei nessa por andá com uma Tuma da pesada. Não dei olvido a ninguém e aqui tô, não dá mais pra parar porque é uma doidêra só, Tchia.

Outros não quiseram falar. Perderam o interesse rapidamente, e como que em transe, saíram da sala.

Passaram-se vários dias, e nada de notícia. Ficamos apreensivos. O que será que aconteceu? Já tínhamos notícia de que houvera uma tentativa de assalto no mercado e os seguranças teriam feito um serviço perfeito. Mas não sabíamos que serviço seria esse.

Dias depois tivemos a resposta. Alguns poucos chegaram. Estavam inchados, cheios de hematomas, e no cabelo, graxa, muita graxa.

Perguntamos ao Comandante o que tinha acontecido. Ele com aquele sorriso ainda malandro, mas demonstrando sentir dor, foi narrando sua aventura com os companheiros:

_Fomo no dumingu, pulamo o muro e quando todos os mininos tavam dentro, escalamu aquele teiado qui a sinhora disse qui a genti não ia consegui subi. Rindo continuou.

_Quandu entramu, fomo discoberto pelos homem e foi cacêti . Era negu pulando feito gatu, depôs da surra, meteram graxa na genti e disseram pra genti vi aqui pra professora tirá.

A classe estava muda. Nos olhos dos alunos viam-se dó, medo. Alguém tinha dedurado os planos dos meninos. Será que eles iam querer vingança? Culpariam a professora?

Os alunos que eram mais corajosos pegaram seu moleque e foram tentar tirar a graxa dos cabelos. Bem que tentaram, porém não conseguiram. Eles gritavam, pois água não tirava; shampoo também não; creme não funcionava; tesoura travava; navalha feria.

O Comandante estava num estado pior. O aluno que tentou fazer o serviço não conseguiu e pálido chamou a professora para que fizesse o que ele não poderia fazer. Ela se aproximou, e percebeu que em alguns lugares quando o aluno passou a navalha, a pele veio junto com o cabelo, e o sangue descia. O Comandante não deu um pio. Parecia não sentir dor.

A professora disse: Não vai dar para fazer o serviço. Ele levantou aqueles olhos negros, e pediu:

_Vá em frente, Dona eu aguentu!

E ela com lágrimas escorrendo pelo rosto foi realizando um trabalho que não estava preparada para fazer. Fez o que pôde e quando ele saiu da cadeira, foi preciso ir até o lavador lavar a cabeça. Pra surpresa de muitos a água saia vermelha.

Ele olhou-se no espelho. Virou-se para os colegas, que olhavam um para o outro achando graça na careca de cada um. Voltou-se para a Professora e com um sorriso que todos já conheciam, agradeceu.

Perguntou se todos tinham agradecido, e como todos tinham feito um sinal de afirmação,fez um gesto e todos o seguiram.

Seguiram-no para continuar tendo como colchão e cobertor, um papelão; como um teto uma marquise; como alimento, restos tirados de uma lata de lixo; para matar a sede, água encontrada numa poça ou numa lata na rua; para ter um contato físico só através das batalhas por área de ¨trabalho¨; como perfume, o cheiro atraente e destruidor da cola, ou de outros produtos químicos; como estimulante, a capacidade de se virar na selva de pedra.

Saíram para onde, ninguém soube dizer. Nunca mais foram vistos. O Comandante deixou sua marca. A marca que ele deixou em muitas pessoas, provavelmente foi marca de dor, de furto, de agressão por palavras. Em mim ele deixou outra marca: Fui eu quem teve a dolorida tarefa de limpar a cabecinha daquele menino de rua.

_Comandante não sei se você ainda vive. Se ainda vive, receba mais uma vez meu conselho, que também estendo a outros meninos de rua: ainda existe uma saída. Há muitas pessoas, que como eu, ama vocês, mas não sabem como expressar esse amor. Aos Comandantes e comandados escolham outro caminho. Posso até muitas vezes ter esquecido meu Comandante e seus companheiros, mas tenho certeza que há um Deus que não se esquece de nenhum dos filhos seus. E vocês são um desses filhos.

Nas minhas orações apresento o meu Comandante e seus companheiros. Deus pode e quer lhes alcançar.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 07/01/2009
Código do texto: T1372032
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