Latência
A maioria se habituara, mas ela sabia que eram tempos difíceis.
O multicolorido das prateleiras envernizava a realidade. Mesmo não alcançando os produtos que continham uma dose maior de felicidade, a maioria pensava que se estivessem em uma guerra não haveria tanta fartura.
Ainda que não utilizasse o microscópio da reflexão, Ana Luzia conseguia notar tudo aquilo.
Caminhando pelo supermercado durante as compras escolhia apenas aquilo que não a apetecia. A insipidez dos sabores era sua grande e inconsciente aliada para lhe lembrar a náusea que aquele mundo provocava.
No caixa ouviu um “bom dia” e antes que pudesse responder foi interrompida:
- Pagamento em cheque ou dinheiro?
Sem se perturbar levou o pensamento à mesa onde seriam postos os alimentos recém-adquiridos. Em volta dela sua família. A mais autêntica imitação das propagandas de margarina: a mão materna deslizando suavemente sobre os talheres enquanto o pai sorridente lê o jornal; ao lado seu irmão retratando o que parecia ser o eterno entusiasmo que os poucos anos empresta.
Com as compras em mãos, Ana Luzia caminhava em direção ao seu prédio enquanto observava as pessoas. Podia vê-las portando telefones que perpetuavam a incomunicabilidade, aparelhos musicais tocando trilhas sonoras do silêncio que impregnava o cotidiano... E toda aparelhagem em miniatura... A cada ano menor, assim como os desejos e as verdades.
As camadas de beleza em oferta camuflavam expressões de experiências marcadas nos rostos daqueles que transitavam. E eram faces tão parecidas! Podia jurar tê-las visto em algum anúncio de TV ou outdoor.
Ela poderia fazer perguntas sobre o que via e sabia disso! Mas não ousava.
Sem aviso a vertigem tomou conta de si. Não era uma sensação nova, mas seu motivo não era tão óbvio que pudesse ser descoberto pelos médicos.
Entre o cambalear dos pés pôde perceber: não era uma simples tontura. Era a correnteza do que deveria ser a afastando daquilo que já era e que ela forçava em permanecer.
Assim, evitou apoiar-se nas paredes para recobrar o equilíbrio como sempre fazia. Simplesmente deixou-se levar e seus movimentos a guiavam para uma via oposta àquela que sempre seguiu.
Conforme ia se afastando do antigo caminho notava que seus pés retomavam a coerência e que a euforia a preenchia, pois sua visão passou a conhecer uma nitidez que nunca imaginou existir.
“Então é assim que as coisas são!” – pensou.
As cores em volta tornavam-se cada vez mais intensas, mas não feriam os olhos – pareciam mesmo acordá-los.
A sonoridade uniforme do ambiente de súbito deu lugar a um forte estampido e aos poucos sentiu em sua boca o gosto de sangue.
Luzia sorriu com a sensação de finalmente experimentar o sabor da vida. Da vida em seu estado verbal.