O Velho Ambulante

Ele saia de madrugada, indiferente às estações do ano. Não sabia o que era férias, não sabia o que era feriado. Todo santo dia ia com seus apetrechos de trabalho, que eram: um pau bem raspado e alisado por mãos hábeis; nas pontas tinha uma leve ranhura, onde ficavam as cordas que seguravam os balaios. Tinha que chegar cedo para pegar as melhores mercadorias e assim não ter tanto prejuízo.

Pele curtida, rugas profundas, mãos calejadas, pés com rachaduras. Não se percebia a idade que tinha. Era um trabalhador incansável que comia àquilo que lucrava diariamente.

Poucos conheciam seu nome: José Severino de Lima Machado. A esposa o chamava de Machadinho e nas horas de afeto: era só Zé. Os filhos o chamavam de painho; pros parentes, apenas Zé Machado; os fregueses o chamavam de o Velho ambulante.

Família grande. Cinco filhos e esposa pra dar de comida. Lá ia ele até o mercado público onde pela madrugada, antes que o dia clareasse chegavam os caminhões que viam da Ceasa distribuir suas mercadorias para os ambulantes e feirantes.

Depois que distribuía bem as mercadorias em cada balaio, saía com sua carga em direção à freguesia certa que tinha e outras tantas que faria no caminho. Torcia para que seu fardo ficasse mais leve antes do meio dia, porque nesse horário eram ruins as vendas por dois motivos: as donas de casas estavam pondo almoço na mesa e também porque o sol nesse horário era inclemente. Não ficava um só pé de pessoa na rua. Quando acontecia de nesse horário ainda ter mercadoria pra vender, procurava uma sombra de uma árvore ou um alpendre de uma bodega e ali descansava um pouco, comia uma fruta, bebia água se alguém por compaixão lhe atendesse ao pedido, se não ficava com a goela ardendo e a boca sem saliva, lábios rachados e um suor que não parava de escorrer pelo corpo. Era sempre assim. Já se acostumara. Às vezes a garrafa que trazia de casa ainda tinha um pouco de água, e com um longo gole bebia daquela água morna e dava graças a Deus por ainda ter forças para prosseguir. Tantos amigos de batalha não conseguiram e tombaram sob o peso do ganha pão. Ele não, embora às vezes se considerasse um cavalo humano.

Cavalo humano? Sim, desses bem ralé. Ninguém o notava, muitas vezes não davam valor às suas mercadorias e não viam que ele estava cansado. Muitas vezes o deixavam em pé, a espera do pagamento que tardava em chegar, porque a dona da casa fora dar banho no filho, ou fora olhar o feijão que estava no fogo e esquecera que tinha dito: daqui um pouquinho eu trago o seu dinheiro.

No final da tarde, com a sobra da mercadoria, voltava pra casa pra saber se teve lucro ou não. Pela quantidade de mercadoria que sobrava sabia se o dia fora bom ou não; olha que fazia força pra que isso não acontecesse, tentava de todas as formas passar a sobra por qualquer ninharia. O importante é que não tivesse prejuízo. Mas se sobrasse um pouquinho não fazia mal. Levava para casa pra que sua velha aproveitasse fazendo uma sopa, se fosse verdura e se fosse fruta, lavava, tirava os pedaços estragados e comiam com farinha. Era um ótimo café da noite.

As crianças estavam crescendo, as roupas e sapatos ficando apertados, e ele sempre correndo pra botar o pão na mesa. A mulher, lavando roupa de ganho colocava uns trocados em casa, mas havia muita freguesa xexeira que mandava a trouxa de roupa suja e quando a sua esposa mandava o menino levar a roupa já lavada e passada, a madame dizia que depois mandava o pagamento e ficava assim enrolando até que ela se cansasse e deixasse pra lá. Minha mulher, dizia ele, é uma santa; tirar grude dos ricos, trabalhando como besta de carga e depois levando um chute no traseiro, é coisa que só tendo sangue de barata pra não sentir revolta, mas tem nada não, Deus um dia tira nós dessa vida.

Segundo ele: Dia ruim de vender era no inverno. Êta, aquela enxurrada medonha, o povo trancado; um frio daqueles que a gente só sente quando pára pra esperar, aí o sangue esfria e dar pra perceber que só tendo couro de jacaré pra não se incomodar com as mudanças do tempo.

Ia levando sua vidinha de ambulante, tentando não pensar no tempo que estava passando rápido e ele ainda precisando terminar de fazer a casa. Faltava muita coisa e material tava caro. Todo mundo sobe os preços da mercadoria, só ele que não podia aumentar nada, se não ficava sem freguesia. Não dar para apertar mais a cintura se não arrebenta, o jeito é esperar um milagre, e dos grandes, se não, chega à hora da minha morte e eu não chego nem a construir os quartos dos moleques. Deus ajuda quem madruga, é por isso que ainda acredito que Ele lá de cima vai olhar pra mim e dizer:

_ Chegou à hora de ajudar o velho. _ e aí tudo vai mudar.

Hoje acordou disposto a trabalhar dobrado. Tentaria fazer novos fregueses lá na Sapucaia. O bairro é novo e tem muita casa sendo construída por lá. Quem sabe venderia tudo bem cedo dando tempo pra outra viagem?

Dito e feito. Deus não tarda. Ele chega quando menos se espera. O velho ambulante foi e voltou com duas cargas e vendeu tudo. Agora era só continuar trazendo mercadoria boa e sempre mais cedo do que os outros boucudos, se não ficaria a ver navios, pensava com seus botões.

_O povo daqui é mais alegre e até agora ninguém falou em fiado. Preciso ficar mais esperto, pois quando cheguei no final da rua encontrei o moleque Zuza, com aquele sorriso maroto, sempre a espreita e já sei que amanhã a disputa vai ser maior.

O tempo corre. Chegou o final do ano.

_ Fiquei surpreso com os presentes que alguns fregueses me deram. Nunca aconteceu antes. Nem quando era pequeno alguém se lembrava de mim. A sorte está mudando e o mundo parece mais colorido. Até meus balaios estão ficando mais leves. A minha mulher diz que estou parecendo um garotinho que ganhou confeito. Mas fazer o quê? Um dia terei minha casa pronta; vou ver meus filhos crescidos; vou ter salário do governo e aí não vai ser mais preciso levar essa vida de cavalo humano. Enquanto esse dia não chega, vou levando, vou levando.

Tinha sempre histórias pra contar, de que ouviu ou viu acontecer:

-Perto da casa de dona Zefinha,dizia ele, minha freguesa de longas datas, um menino foi brincar num terreno baldio e não viu uma cascavel. Por pouco não foi picado. Se não fosse seu Totonho, o pedreiro, o moleque já era defunto. Puxou o menino pelo braço e matou a cobra num golpe certeiro. Êta homem macho! É preciso ter precisão para não errar se não a bicha pica mesmo. A mãe do moleque conta pra Deus e o mundo o que fez seu Totonho.É grata pro resto da vida. É disso que tenho medo, e sinto até um aperto no peito só em pensar se fosse com um dos meus filhos. Deus me defenda passar pela dor de enterrar um deles.

Outro dia saiu com um ¨acontecido¨de época remota.

_Lá pras bandas do Jardim Aurora, a criançada brincava num desses sítios que os donos não moram, e de uma hora pra outra um moleque que corria a frente dos outros desapareceu entre as folhagens. Todos ficaram pasmos e gritaram bastante, pedindo socorro. Quando os adultos chegaram, e afastaram as ramagens, viram com surpresa, o moleque só com a cabeça de fora, preso a umas retiranas. Ele tinha caido numa cacimba e não morreu porque não era o dia. Menino de sorte, esse. Depois desse dia, o pessoal resolveu colocar pedra e barro até cobrir o buraco para que outras crianças ou até mesmo adultos não viesse cair e morrer.

O Velho ambulante continua na sua lida. Parece nuvem levada pelo vento, segue seu caminho confiante num amanhã melhor. Seu pai, dizia ele, me disse que o segredo da felicidade é aproveitar para ser feliz hoje; nunca esperar a felicidade no amanhã.

Parecia seguir fielmente esse conselho. Tentava tirar proveito de cada momento, contentando-se com o que tinha e sendo feliz com o que estava ao seu alcance.

Os anos passaram.

Um dia aconteceu, disse ele com grande surpresa_ Despertei para uma realidade que não via.

Prosseguiu expressando sua descoberta:

_ Meus filhos cresceram e eu nem percebi. Acordei, e percebi que meu filho estava falando grosso como homem. Meu filho era um homem de barba e bigode! As meninas já estavam pensando em casar, e ao sentar à mesa, olhei para minha velha e vi que seus cabelos estavam ficando brancos! Parei com a colher a um palmo da boca. Ninguém pareceu perceber. Forcei a comida goela a baixo e quando levantei fui direto para o espelho quebrado, e, vi.

Vi um homem curvado, cabelos brancos e ralos. Rosto cheio de marcas do sol e do vento; mãos trêmulas e olhos embaçados. O tempo passou... eu também envelheci.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 13/02/2009
Reeditado em 13/02/2009
Código do texto: T1437157
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.