ENCONTRO COM KAFKA

Eram três horas da tarde, olhei novamente para Kafka, não conseguia entender como alguém poderia se transformar em um besouro. Que loucura! Mas continuei a leitura. Olhei em volta. Só havia algumas pessoas, no entanto, ninguém lia literatura. Estudavam para concursos ou davam prosseguimento a trabalhos escolares. Eu, naquela concentração, era o único desocupado. É estranho, mas aquela leitura absorvia toda a minha concentração. Somente uma interrogação me importava. Por que diante de uma miríade de opções, foi justamente Kafka quem me conquistou naquele momento? Não compreendi. Nunca compreendi. Será que um dia compreenderei? Não sei.

Só sei que naquele instante, minha vida mudou, não sei se para melhor ou pior, mas mudou. Sentava-se à minha frente uma linda jovem. Não tinha uma beleza insólita. Não, era uma beleza comum, mas era bela. Porém, a questão era a seguinte: por que ela se sentou ali na minha frente? Ela tinha muitas possibilidades, muitos lugares, mas por que se sentou aqui?

Tentei decifrar esse enigma. Talvez fosse por que ela se sentiu atraída por mim, mas eu não sou atraente. Talvez fosse por que ela gostasse daquele lugar. Sim, essa seria uma aceitável opção. Porém, não saciou minha dúvida. Então, pensei que fosse por que Kafka ocupasse pouco espaço e não fizesse barulho com o vira e mexe de páginas. É, essa hipótese me confortou.

Retornei à leitura. Não a mesma leitura, era agora, uma leitura elegante, compreendia tudo, sorria, aplaudia mentalmente Kafka. Esnobava. Assumi a postura de um proficiente leitor, quase co-autor do texto. Tentei impressionar.

Decidi encarar o desafio de frente. Quando alguém virou uma página, olhei. Não fui correspondido. Tossiram, igualmente olhei. A correspondência não houve. Agora Kafka era chato, voltei à angustia do besouro, acelerei a leitura. Aí veio outro fato inusitado.

Um barulho de porta se abrindo. Quem era? Não vi. Vi sim um olhar que me arrepiou, que me estremeceu, minha boca amargou. Eu não olhava. Eu era olhado. Aqueles lindos olhos castanhos me olhavam. Não os que entravam, estes nem sei se olhavam para algum lugar. Não. Os que me olhavam eram os que estavam na minha frente.

Voltei à leitura, agora o besouro não me angustiava, mas pelo contrário, era um espectador, como eu, de uma nova possibilidade, de uma nova emoção ótica, mesmo que irrepetível, mas esperada.

As cardíacas batidas foram se normalizando. O besouro cumpria seu lastimável destino. E eu tentava adiar o fim.

Tentei adiar algumas palavras. Não consegui.

Retornei à leitura, sem ler. Li possibilidades de chamar atenção dela. Qual seria seu nome, talvez Sofia, Sara, não sei. Pensei em iniciar uma conversa. Recuei. O que poderia falar? O que poderia perguntar? Que horas são? Não, isso não porque havia um relógio na minha frente. Se iria fazer vestibular? Não. A leitura dela estava muito mais voltado para concursos. Tomei coragem. Vou perguntar qualquer coisa só para perguntar.

Mais uma vez escuto um barulho de porta se abrindo. Vem em nossa direção um rápido corpo ofegante. Se aproxima dela, fala qualquer coisa em seu ouvido. De repente ela se levanta, calmamente recolhe seu material de estudos. Se levanta, dá um sensível abraço, recebe um delicado beijo. Vão-se e me deixam solitário. Só eu e Kafka. E o besouro agora me deixa, não quer mais alimentar minha angústia.

junior trezeano
Enviado por junior trezeano em 16/02/2009
Reeditado em 07/10/2009
Código do texto: T1441913