Propicios intantes...

O segundo derradeiro, o limite da hipocrisia

A sua melodiosa voz de farsante

E meu sorriso de pura e imaculada vadia

Era a dor meu fascínio, meu algoz

Sou a doentia carente, a doce ironia

A apaixonada, a mercê, sem voz

Rabiscava alguns versos tolos em uma folha qualquer, o sistema da empresa onde trabalhava estava momentaneamente paralisado, os responsáveis pela manutenção pareciam ter pouca pressa, ou prioridades, não fazia diferença, a agonia não era a demora, mas o tempo vago que permitia pensar em seu amor proibido. Era um homem dominador, autentico em personalidade, ousado em tudo, um líder nato, sem maiores delongas, era o diretor da empresa, a figura imponente que nos corredores era a encarnação de um mal pressagio, pois sua presença sempre dizia de problemas administrativos, o que deixava muitos pescoços em risco.

Conheceram-se de um modo inusitado, era apenas uma executiva de nível hierárquico baixo, responsável pelo monitoramento de uma das filiais, as análises e o planejamento baseado nas tendências, que era cobrada semanalmente pelo gerente geral, só lhe cabia se manter com dor de cabeça; mas em hipótese alguma tinha contato com o chefe, que era o sócio majoritário daquele império de informática. Era ela apenas uma peça da engrenagem, onde de um lado entrava matéria prima, e do outro tinha que sair muito dinheiro, e não importava quanto em lágrimas de sangue fosse necessário derramar, era desafiador, criava expectativa e desejo de superação, no entanto a tensão era excessiva...

Certo dia, a reunião dos sócios seria em seu andar, pois a sala do ultimo andar estava ocupada com o setor de projetos, desde a entrada de uma nova equipe de marketing e gestão estratégica. Não havia, porém, estrutura para atendê-los com a mesma classe, acostumado ao conforto asséptico do acrílico e decoração pós-moderna, teria que se contentar com uma simples sala de reunião, e no máximo um cafezinho. A reunião sempre demorava várias horas, mas não foram avisados, os pobres trabalhadores dos setores ao redor, que a discussão chegava aos berros de um modo quase assustador, temiam ouvir tiros ou moveis voando, era simples, 15 homens com dinheiro em jogo era quase guerra! Foi assim que, naquele dia, concentrada a poucos centímetros do computador, enquanto montava uma planilha de custos e gastos contrapondo com a possibilidade de lucro, mascarando o ônus, destacando o lucro, foi surpreendida com um homem entrando em seu setor:

-Onde tem comida neste lugar! Será que todos já foram embora?

Levantou os olhos da tela, fitou-o sem compreender a entrada barulhenta e sem saber de quem se tratava. Pelo terno alguém importante, mas, quem seria?

-Está procurando a cantina, fica no final do corredor, do outro lado, provavelmente já está fechada, por já passar das 20 horas...

-Se estiver fechada vai ter que ser aberta para mim, estou faminto, e sou um sócio desta coisa aqui, e quero comer!

-O que o senhor quer comer?

-Senhorita, estou aceitando qualquer coisa.

Abriu a gaveta e tirou um pacote de biscoitos.

-Serve?

-Sim- pegou o pacote e abriu avidamente, comeu muitos, antes de dizer algo- obrigada-olhou o crachá- Sibila, nome interessante...

Sorriu, ainda tinha que terminar as planilhas e estava tarde.

-Se me dá licença, tenho que terminar meu trabalho, já esta tarde, e hoje é sexta-feira, tenho que deixar para o gerente geral, de modo que amanhã ele faça o balanço geral de todas as filiais.

-Certo não vou te atrapalhar.

Sentou em uma mesa próxima, ligou um computador colocando seu login e senha, e tendo acesso aos arquivos mais gerais da empresa, viu sem ser notada que, de fato, se tratava de um dos sócios.

Terminou suas obrigações, juntou suas coisas, desligou o computador, disse um “boa noite” bem formal e se dirigiu à saída.

-Quer uma carona?

Seria ótimo.

-Não quero incomodar...

-Sem drama, hoje é sexta-feira, e como suspeito que não seria suicida de estar de carro aqui neste lugar onde o transito passa tempo demais caótico, acho que seria bom chegar mais cedo em casa não acha?

-Seria, ficarei imensamente grata.

Foram em silêncio, depois é claro de dizer seu endereço, o carro magnífico, o conforto sem igual, era admirável, mas não causava realmente interesse, apenas admiração, não ambicionava nada daquele tipo, gostava da simplicidade das coisas, quando parou na porta de sua casa ela sorriu amigavelmente e agradeceu.

-Obrigada pela gentileza Sr....

Não sabia o nome dele.

-Samuel, realmente me esqueci de apresentar- sentiu um aperto na garganta, ele era um dos grandes.

-Então agradeço ao senhor, Samuel, foi uma grande gentileza de sua parte, e sou muito grata, tenha uma boa noite.

-Ah, recompensarei pelos biscoitos que me salvaram certo?

Sorriu com a delicadeza e humor que não cabia muito bem no traje.

-Vou esperar -sorriu- tchau.

-Tchau.

Ele devia morar em uma mansão, e tinha acabado de ver a casa simples que lhe servia tão bem, com sua varanda e suas plantas, seu refugio, que nada tinha de sofisticado ou chique, mas era simples e cheio de arte, o que a agradava profundamente.

Sábado pela manhã acordou com a luz entrando pela janela, sábado é um alivio, tinha seu descanso, fazia apenas o necessário, gostava de se dedicar a seu jardim, às suas plantas e algum lazer, como ler um bom livro ou ver um filme. Sentou na varanda, um vestido leve, comia frutas, virava as páginas do livro com a atenção de quem sorve algo muito mágico, seus pequenos prazeres, solitários, mas plenos...

Ele passava pela rua que no dia anterior deixara a moça da empresa, ela era bela, não magnífica como aquelas a que estava acostumado, mas bela com simplicidade e firmeza, e tinha que admitir que em momento algum tratou-o de um modo sedutor, interesseiro, bajulador, algo que estava acostumado. Lembrou de comer os biscoitos dela, aquilo o fazia sorrir, pois foi um gesto simples demais, algo de fraterno porém quase irônico, alguém tão importante faminto, tendo que “filar” algo de uma funcionária. Olhou para a casa, agora iluminada, era verde, a varanda com um ar antiquado, reluzia com o sol, as paredes brancas, as janelas escuras, era uma casa simples, algo que remetia a antiguidade, mas tinha um ar de conforto, sentiu o peso de seu cargo, e de suas responsabilidades, aquilo era bem o que queria...Ficou algum tempo parado, só observando, se surpreendeu ao notar algo se movendo, era um pé, arredou a cabeça, era ela! Lia um livro distraidamente, sentada, com um vestido claro, contrastando com a tez morena, a cena parecia de um quadro, algo digno de ser eternizado em uma tela, era como se ela tivesse se colocado daquele modo para ser vista, esperando olhos que contemplassem e se deleitassem com seus nuances, ela tinha a delicadeza de uma lembrança boa. Sentiu-se bobo parado ali, mas se sentiria louco se descesse... Preferiu se sentir louco:

-Olá!

Não esperava visitas, e daquela distancia não conseguia reconhecer o homem que a esperava no portão, levantou e foi caminhando preguiçosamente, devia ser um vendedor.

-Olá?

-Tudo bem Sibila?

Estranhou, ele sabia seu nome, tentou se lembrar a voz não era estranha, mas o rosto...

Ficou olhando para ele, esperando ter o lampejo mágico da memória voltando, mas nada...

-Desculpa, mas não sei quem é você.

-Samuel.

Assustou-se, não era possível! Ficou olhando desacreditada, não entendia nada! Aquilo parecia uma piada.

-É... Mas, assim, o que o senhor deseja?-ficou pensando se teria esquecido algo no carro.

-Eu estava passando por aqui, e fiquei vendo sua casa... Passa uma sensação de repouso, de acalento, não sei bem, resolvi chamá-la quando a vi sentada na varanda, tenho que admitir que fiz por impulso, e não sei nem o que dizer ou esperar...

Fez uma cara de menino que a fez sorrir, aquilo parecia ironia do destino.

-Entre então, se está precisando de um refugio, te apresento o meu.

Entraram, caminharam pela grama, chegando à varanda cheia de plantas, entrou pela sala decorada com primor de uma romântica, cheio de cores e detalhes, ficou deslumbrado com a criatividade dos ornamentos e sentia cada vez mais estar em um paraíso secreto. Na cozinha fez um suco, que ele tomou como se fosse parte do script, começaram a conversar como se fossem velhos amigos, falaram sobre varias coisas, com direito a filosofia barata de analises engraçadas, riram, e nem o calor nem coisa alguma parecia um obstáculo, estava apenas tudo bem.

-Almoçará comigo né?

-Se isto é um convite...

-Não, é uma intimação! –sorriu- sua companhia esta me agradando, e certamente minha comida não te matará.

-Então aceito.

O macarrão, a salada, tudo tinha gosto de alegria, não existia barreira, nem requinte, tudo era comum e espontâneo, era apenas viver aqueles momentos, um deleite.

Contaram de seus mais profundos segredos: medos, preocupações, tristezas e decepções; de entregaram a uma cumplicidade perigosa, eternizaram um dia, marcando com fogo, cravando na rocha algo entre a fantasia mais linda e o real mais absurdo, se encontraram nas falas e no silencio, e o tudo, que antes era disforme porem imutável, predeterminado, se tornou maleável, digno de ser sonhado, era o sol nascendo outra vez...

T Sophie
Enviado por T Sophie em 05/03/2009
Reeditado em 18/01/2010
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