*  Fosco cotidiano *

Era uma manhã esfumaçada do mês de Agosto do ano de 2007. Uma insípida manhã como outra qualquer na vida daquele casal metropolitano.
Após o despertar do incansável relógio de cabeceira, Júlia e Pedro se levantaram da cama. Como de costume, ela logo se ergueu esbaforida e desceu as escadas em direção à cozinha para preparar o desjejum. Ele, depois de se remexer sob os lençóis impregnados de suor, ainda cambaleante, entrou no banheiro batendo a porta de forma frenética. Aquilo deixava Júlia profundamente irritada, ao ponto de lhe causar acnes na pele e brotoejas na alma.
Todavia, especificamente naquela manhã, ela não queria exasperar. Estava cansada da mesmice. Respirou profundamente, tomou um copo de água gelada e continuou sua tarefa rotineira de preparar o desjejum do casal.

Os pensamentos de Júlia eram como flechas atiradas em várias direções sem atingir alvo algum. As flechas rodopiavam em sua mente até ficarem tontas e desmaiarem no solo da consciência. Júlia sentia o corpo pesado e a alma, carregada de ansiedade e preocupações, fazia sua cabeça latejar. As enxaquecas eram constantes ; sinal de que tudo em seu corpo estava retesado e portanto,  havia subido à cabeça.

Após algum tempo, Pedro desceu as escadas, proferiu um “bom dia” pouco sonoro, colocou café na xícara, sentou-se em uma das cadeiras que compunham a mesa de refeições da cozinha e se pôs a ler os e-mails armazenados na caixa postal do s
eu notebook. Não havia olhares e nem entreolhares. Lá fora, o ritmo da vida já se achava intenso, contudo, dentro do apartamento daquele casal, o tempo, zangado, parecia ter adormecido.

O que Pedro e Júlia ainda teriam a dizer um ao outro após dezesseis anos de casamento ? Um silêncio polar cortou a cozinha de cerâmica rosada.

Subitamente, Júlia se lembrou de sua infância. Em momento algum da sua pacata vida, a presença materna lhe pareceu tão viva, reluzente. Ela podia sentir o cheiro dos seios quentes de sua mãe lhe dando guarida. Aquele era o único lugar em que Júlia desejou, com força uterina, estar naquele momento.

Entre um e outro gole de café, Júlia contemplava uma foto desbotada do casal, afixada na porta da geladeira. Júlia e Pedro estavam abraçados. Havia flores em volta, mas adiante delas, espessos segredos camuflados em sorrisos pálidos.
Naquele instante, uma lágrima tímida brotou no canto dos olhos esverdeados de Júlia, enquanto Pedro comia um pedaço de pão com geléia e permanecia interagindo com seu notebook. Ele não ouvia os pensamentos de Júlia que
bradavam de forma ensurdecedora, tão pouco lia os sentimentos expressos em seus olhos obnubilados pelo sal.
Como ele poderia perceber o que ela sentia ?
Há um abismo, talvez intransponível, entre os gêneros masculino e  feminino.  Quem se aventura sondá-lo ?

Naquele momento, despontou em Júlia um desejo incontido de escrever. De posse da caneta e do papel, as palavras fluiram com a leveza de uma garça a plainar sobre as águas serenas de um lago límpido. Eis o que ela escreveu:

 
Pare para observar o que a neblina em teus olhos ainda não  te deixa ver.     Permita que a névoa seja removida e o espinho em tua carne expurgado e pare, ainda que por alguns instantes, para acolher a minha dor, contemplar meus sentimentos que  são parceiros dos teus e olhe para o que me faz diferente de ti, nem melhor e nem pior, apenas diferente. Pare e reflita por um  momento, sobre a nossa cumplicidade, sobre o que foi tecido entre  nós e permita-me estar de outro jeito. De um jeito possível, mas essencialmente outro, essencialmente meu. Vasculhe o teu íntimo e  recolha o feixe de luz que goteja vida no deserto da tua insensatez e  a partir de então, escreva comigo uma nova estória, onde haja lugar  para as nossas diferenças e algum alívio para as nossas mazelas.

Depois de escrever a última palavra, Júlia chorou copiosamente e mais uma vez, lembrou-se da figura materna, lugar de conforto, onde o abismo parece miragem, não mais, ameaça ou constrangimento.
Júlia deixou sem título o que escreveu. Digitou cada palavra em seu computador e sem identificar o emissor, enviou um pedaço de si mesma para o e-mail de Pedro.




* publicado na Antologia de Contos Fantásticos 15º vol, CBJE , 2008

Úrsula Avner
Enviado por Úrsula Avner em 10/03/2009
Reeditado em 11/03/2009
Código do texto: T1479311
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