LA NORMITA

Honorato Guedes subiu o Beco do Porto Grande a passos largos, mais rápidos que os do costume. Trajava sempre calça de tergal preta, camisa de algodão branca, de mangas curtas e dobradas nas pontas. Nos pés trazia os inseparáveis tamancos de caixeta, que ecoavam no calçamento de pedras o seu toc-toc-toc característico. O cabelo pouco era repartido do lado esquerdo e os raros fios que conseguiam alcançar o outro lado do rosto não disfarçavam, antes lhe denunciavam, a calva avançada. Os bigodes eram cuidadosamente escovados e, de tão fartos, davam-lhe um aspecto de lusitano. Mas Honorato não era português. Nascera no Itinguçu, filho de caiçaras de quatro costados: bugres, negros, lusos e francos. Era barbeiro de profissão. E sangrador quando solicitado. Mantinha há anos o seu salão numa pequena casa no Funil de Cima, ao lado da Padaria do Porto. Com a vasta testa toda banhada em suor, entrou no salão, onde alguns amigos e fregueses já o esperavam.

– Quais são as últimas? – perguntou-lhe José Venâncio, escrivão de órfãos e maestro da banda. – Vejo que o amigo parece estar desapontado... Quais as novidades chegadas com o último vapor?

Honorato respondeu com certo aborrecimento, enquanto enxugava a testa ensopada:

– Os tempos andam bicudos... Os vapores, que vem rareando suas carreiras à nossa cidade, estão cada vez mais econômicos de novidades... Veio apenas uma argentina... dizem que cantora de tango... Normita... isso... La Normita... Eu a vi de longe e de relance, no tombadilho do vapor, e quando vemos alguém de longe e de relance os detalhes ficam de menos e a imaginação fica de mais...

– E é bonita, a portenha? – perguntou Quirino, caixeiro da venda do major Leôncio. – Dizem que as mulheres do Prata são mui calientes...

– Uma mulher de mais de cinquenta anos – respondeu Honorato, com enfado – de caliente só tem as lembranças da juventude, isso quando a memória ainda não deu sinais de cansaço...

– Então é feia, essa... como você disse... La Normita... Bonito nome para uma milongueira...

– Não de todo feia – completou Honorato, já com a testa seca. – Creio que tenha sido charmosa no verdor de seus anos (Honorato sempre se expressava livrescamente, apesar de ter cursado apenas o segundo ano primário). – Mas a vida lhe fez um mal danado...

– Não existem mulheres feias! – redarguiu José Venâncio. – Apenas o homem ou não bebeu o suficiente ou há tempos não visita o oculista...

Todos riram. O salão agora já contava com outros fregueses, ou apenas frequentadores, ávidos por saber das últimas trazidas pelo vapor.

– O comentário – continuou Honorato – é que La... La Normita vai cantar hoje à noite, no Teatro Aurelina, para um público reservado, parece que para o grupo do major Leôncio.

– A curriola de sempre! – interrompeu Quirino, enquanto soltava uma baforada de seu cigarro de fumo ordinário.

Os presentes manearam a cabeça afirmativamente. Quem está no poder escolhe as cartas, as marcadas, preferencialmente. E o major Leôncio já estava no poder há dois quatriênios, desde quando derrotara nas urnas o grupo de seu adversário político, o major Juvêncio, depois de três quatriênios deste último encastelado no Paço Municipal.

La Normita. Cantora de tango. Milongueira.

Deveria estar beirando os sessenta. A maquiagem carregada, o batom rubro e o decote pronunciado apenas lhe evidenciavam a decadência. Parava em todos os portos da carreira entre Santos e Cananéia, e os trocados conseguidos com o canto já não tão afinado e as músicas fora de moda, ao menos lhe asseguravam a sobrevivência. Em alguns portos, o público vazio a obrigava a pedir uma colaboração nesta ou naquela casa, neste ou naquele bar, onde cantava seus tangos tristes, melancólicos, a ouvintes que a ouviam com fastio, talvez movidos pela piedade. As apresentações deprimentes, se não lhe rendiam cobres a mais, ao menos lhe asseguravam o almoço e o jantar. E de bar em bar, de cobre em cobre, La Normita vivia na própria vida as desventuras cantadas em seus tangos de quinta categoria.

– Dizem que nem argentina é... Falam que veio de Paranaguá e começou a carreira enrolando um portunhol lá nas docas de Santos... Contam que em cada navio deixava um marinheiro apaixonado... – Honorato, desde que chegara do porto, ainda demonstrava no rosto o seu desapontamento. A falta de novidades provocava-lhe grande insatisfação. E novidades como La Normita não conseguiam tirá-lo de sua contrariedade.

– O major Leôncio desta vez caiu da cadeira... Esperou por uma prima donna da ópera e recebeu de encomenda uma feirante do tango...

Quirino fez esse comentário, que provocou o riso geral, e saiu apressadamente em direção à venda. O major Leôncio devia estar à sua espera, com a cara amarrada.

– Prepare o quarto dos fundos, um banho quente e dois pratos na mesa! – ordenou-lhe rispidamente o major. – Hoje à noite os meus ouvidos ouvirão a boa música portenha...