Um amor cândido

 
Ficava amuado quando saía com a mulher e via casais com filhos:
 
-Quando é que vai chegar a nossa vez, hein, Pretinha?
 
-Sossega, homem.Deus sabe o que faz.
 
Expedito era filho único.A mãe tivera complicações no parto e logo após dar a luz aos gêmeos, teve seu útero retirado às pressas.Dias depois, Elias, o outro bebê, falecera.
 
Na infância, pediu incontáveis vezes por um irmãozinho.Por essa razão, os pais decidiram pô-lo em uma escolinha:
 
-Aqui terá com quem brincar, Ditinho.
 
Casado há pouco mais dez meses com Preta, Expedito não sabia que a esposa tomava pílulas anticoncepcionais às escondidas.Ela não queria ser mãe nos primeiros anos de união.
 
Expedito ficou para morrer quando descobriu o plano da mulher:
 
-Isso não se faz!
 
Transcorridos exatos cinco meses, pendurado ao telefone, ele espalhava a novidade para Deus e o mundo:
 
-Vou ser pai, vou ser pai!
 
A gestação foi cercada de cuidados.Evaristo se desdobrava lhe trazer as melhores frutas, compor um enxoval de primeira e em atender a todos os caprichos da mulher, sem esmorecer.
 
Pretinha, redonda e com os pés inchados em seu oitavo mês de gestação, dizia para o marido:
 
-Você está tão obcecado por essa criança que seria capaz até de morrer por ela, se ela pedisse!
 
Expedito assistiu ao parto com medo que  complicações que tornaram sua mãe estéril vitimasse Pretinha .Queria muitos filhos, “tanto quanto Deus mandasse” – dizia.
 
Ironicamente, o destino brincou com os sentimentos dele: a mulher, após o parto, também havia se tornado incapaz de dar à luz a outra criança.
 
Nasceu um menino, um mulatinho bastante forte e cabeludo.Foi a sensação do berçário com seus quase cinco quilos.
 
Deram-lhe o nome de Elias, em homenagem ao tio falecido precocemente.
 
Elias, rodeado de mimos das avós e principalmente do pai, com um ano e meio, já punha a casa de cabeça para baixo.O pai não admitia que advertissem o filho:
 
- Deixa ele!
 
E o menino foi crescendo, sem ouvir um “não” na vida.Tudo lhe era permitido.Mexia em tudo quanto era lugar.Aos poucos, os pais deixaram de visitar a casa de amigos e parentes por conta do comportamento inadequado do filho.
 
Certa vez, a avó prevendo que o neto rabiscaria o sofá, tratou de repreendê-lo. O garoto abriu a boca. O pai rompeu com a sogra na mesma hora:
 
- Aqui não piso mais!
 
A relação do casal estremeceu.A mãe tentava educar o filho em vão:
 
-É meu único filho! Você queria o quê? Que eu não o amasse? - exagerava o pai.
 
Outra briga era por conta da alimentação.Expedito que era viciado em refrigerante e passou o vício ao filho de três anos e meio:
 
- Eu lavo as minhas mãos, Expedito! Você está estragando o nosso filho com esse mimo todo!
 
Era um domingo de manhã, quando o pai encontrou o filho com uma garrafa de água sanitária nas mãozinhas, apanhada de dentro do armário da cozinha.A mulher comprava o produto de limpeza na porta de casa e o vendedor entregava-lhe a mercadoria numa garrafa pet de dois litros, a mesma usada para acondicionar refrigerante. Expedito deduziu que o filho havia bebido a água pensando que se tratava de outra coisa. Sacudia o menino e lhe indagava:
 
-Fala para o papai, você bebeu *cândida? Bebeu? Ô meu Deus!
 
O menino estava apático.Não respondia a nenhuma pergunta do pai.Aliás, não estava acostumado a falar.Quando queria alguma coisa, apontava choramingando com o dedinho e o pai corria para fazer-lhe as vontades.
 
A blusinha da criança estava molhada, assim como o chão.Não restava dúvidas para Expedito: o filho havia ingerido a mistura à base de cloro.
 
Num gesto à la Romeu , o pai levou a garrafa à boca para beber um pouco do alvejante: “Assim, eu poderei descrever ao médico o que meu filho está sentindo” – raciocinou o pai ensandecido.
 
Quando a mulher chegou à cozinha, viu o marido se contorcendo em cólicas estomacais, enquanto Elias brincava com o restante dos produtos de limpeza, tranquilamente.
 
No hospital, a mulher explicava na emergência que marido e filho haviam bebido água sanitária. Foi aí que Elias, pela primeira vez, falou uma frase inteira, sem ninguém insistir para que ele o fizesse:
 
-Papai bebeu cândida...Elias não gosta!
 
O garoto podia se malcriado, mas mentiroso, não era.
 
 



(Maria Shu – 05 de maio de 2009)

 


Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 05/05/2009
Reeditado em 08/11/2012
Código do texto: T1577768
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