Maternidade - Parte 2

Capítulo 2

- Perdeu titia. Perdeu!

Patrícia apertou a bolsa com força e olhou para trás. Quando viu quem a ameaçava, teve que se segurar para não rir. Uma menina que não parecia ter mais que dez anos, segurando um estilete.

- Não sabia que no jardim de infância ensinavam a roubar. O que ensinam na quinta série? A ser senador?

- Passa a grana, titia...

- Titia é a sua avó.

- Num complica, tia. Minha tia é minha tia, minha avó é minha avó.

- Piadinha infame.

- Passa a grana, tia. Não tenho o dia todo.

- Não posso nem ser assaltada no meu tempo.

A garotinha tocou nas costas da mulher com o estilete, tentando ser mais agressiva, impor respeito. Patrícia abriu bem a mão direita e virou de uma vez para ela, lhe acertando um tapa que a jogou no chão.

- Quantos anos você tem, pirralha?

- Oito.

- Tá com fome?

A menina olhou para o chão, evitando encarar a mulher e seus olhos azuis, mas assentiu com a cabeça. Patrícia arrancou o estilete da mão dela, (substituí por vírgula) colocou na bolsa e depois pegou sua mão.

- Tem uma lanchonete aqui perto. Sua mãe não fica brava se você falar com ou assaltar estranhos?

- Minha mãe morreu.

- E seu pai?

- Fugi de casa tem um ano.

- E você mora onde?

- Por aí.

Patrícia coçou a nuca e disse para si mesma:

- Eu mereço.

***

- Gostoso.

- Eu percebi que você gostou. Afinal de contas, ninguém come três sanduíches em menos de dez minutos sem gostar deles...

A menina fez uma careta. Patrícia respondeu com uma igual. Nesse momento, ela percebeu que os olhos dela eram parecidos com os seus. Ambos azuis, desconfiados, sem demonstrar medo.

- Depois de ter pagado seu almoço, poderia, ao menos, me dizer seu nome.

- Sakura.

- Diferente.

- Nunca vi alguém com esse nome.

- Significa flor de cerejeira. São muito comuns no Japão. Já estive lá, são lindas.

- E o seu qual é?

- Patrícia.

- Do latim, significa da pátria.

Patrícia levantou uma das sobrancelhas, imitando o gesto típico da sua companheira. Sakura entendeu o recado e respondeu a pergunta implícita naquele olhar curioso.

- Eu ouvi isso de um velhote babão, tentando conquistar uma mulher.

A mulher chamou o dono da lanchonete pedindo a conta. Ele olhou para a garotinha com pouca amizade, pois a mesa e a cadeira em que ela sentava estavam imundas.

- Tá olhando o que, tiozinho? A tia vai pagar, não vai?

- Tô vendo que não é só o corpo que precisa ser limpo, a boca também.

Patrícia pagou a conta e arrastou, pela orelha para fora, Sakura, que queria bater no dono da lanchonete.

- Me larga. Você não manda em mim.

- Você tentou me assaltar, sofra as consequências.

- Saco.

- Se pelo menos tivesse tamanho de gente.

- Você não manda em mim.

- Tá, não mando. Não quer ir lá em casa? Tomar um banho? Pode dormir lá essa noite se quiser. Dri vai gostar de visitas.

Sakura olhou curiosa para a mulher ao seu lado. Estava um pouco desconfiada. Que pessoa ofereceria a casa para alguém que tentava te assaltar?

- Tu vende órgão?

- Hã?

- Tá querendo me levar para algum canto, arrancar meu rim e vender para algum ricaço.

- Tá doida, menina. Eu não faço isso não.

Sakura coçou a nuca, ficou pensativa e tornou a perguntar:

- É tarada, então?

- Tarada?

- Claro. Tá querendo me levar pra um canto e fazer...coisas.

O rosto de Patrícia ficou vermelho. Ela negou e explicou as coisas:

- Fui com a tua cara, pirralha. Também vivi na rua, cresci na rua. Era tão franzina quanto você e não conseguia assaltar ninguém, como você...

- Não é bem assim...

- Então tive que arrumar um jeito de ganhar dinheiro. E não era um jeito muito legal.

Sakura pareceu entender e ficou com uma expressão séria.

- E seu fosse uma tarada ou quisesse (pus no singular) seu rim não iria te contar.

***

- Cheguei.

- Tô na cozinha, amor.

Sakura escutou uma voz feminina e olhou curiosa para Patrícia, quando escutou o vocativo “amor”:

- Tarada...

- Para com isso.

Segurando uma peixeira, Adriana foi até a sala. Imediatamente, Sakura levou a mão até o lado direito do seu corpo e disse:

- Vai roubar meu rim!

Adriana levantou as duas sobrancelhas e lançou um olhar inquisidor para sua mulher:

- Já falei para você parar com isso, Sakura.

- Quem é a pirralha?

- Encontrei essa filhote de cruz credo na rua, posso ficar?

- Já falei... Peixinhos dourados é legal. Cachorrinho, se for bem pequeno, é aceitável. Mas isso aí?

- Se nós não gostarmos, podemos vender os rins e o fígado.

Sakura deu um passo para trás, meio assustada. “Em que merda me meti dessa vez?” - ela pensou, mas quando as duas começaram a rir, relaxou.

- Tava brincando. Sakura, essa é a minha mulher, Adriana. Dri, essa é a Sakura. Tentou me assaltar mais cedo.

- Ela vai ter uma ótima impressão de mim assim.

As três foram para a cozinha e Patrícia contou toda a história. Adriana escutou tudo com bom humor, serviu o jantar e depois empurrou a garota para o banheiro. Quando ficou sozinha com a outra, seu semblante ficou sério.

- Que história é essa? O que você tá querendo?

- Pelo menos, tirar ela da rua.

- Pelo menos? E qual é o pelo “mais”?

- Ah, Dri. A menina é maior idiota como assaltante. Ia ter que dar o cú por aí para sobreviver.

- E se ela resolver assaltar a gente à noite?

- Grande cristã.

- Nem vem...você é atéia, não pode apelar para minha religião.

- Você quer que essa criança vá para a rua?

Adriana fechou os olhos e soltou um suspiro enorme. Enrolou os cabelos nos dedos e depois os desembaraçou. Escolheu cuidadosamente cada palavra e respondeu:

- Não. Eu só estou preocupada com você. Com essa história de filho e tudo mais. Tô com medo que você esteja criando uma ilusão. Só isso.

- Eu vou falar com ela. Sakura fica aqui uns dois, três dias, se ela quiser, e depois procuramos o conselho tutelar ou o juizado de menores.

- Terminei.

Sakura desligou o chuveiro e se enrolou numa toalha. Patrícia e Adriana foram até lá. As duas mulheres se olharam divertidas e pareceram acordar, silenciosamente, alguma travessura. Adriana olhou atrás das orelhas e perguntou:

- Tomou banho direitinho.

Sakura revirou os olhos e respondeu sem jeito:

- Claro.

Patrícia levantou um dos pés dela e Adriana evitou que ela caísse:

- Os pés estão limpinhos?

- Eu sei tomar banho.

- Suas orelhas não dizem isso.

- Os pés também não.

- Debaixo das axilas?

- Sim.

- As unhas?

- É.

As duas se olharam mais uma vez, com sorrisos maldosos. Patrícia perguntou:

- E lá?

Sakura ficou vermelha e se fingiu de desentendida:

- Lá?

Adriana apontou para a própria vagina e disse:

- É. Lá.

- Taradas.

- Só queremos nos certificar...

- ....que você tomou banho direito.

Ela deu um passo para trás, tentando se afastar das duas. Depois correu para a sala. Patrícia e Adriana a cercaram perto de uma poltrona:

- Já que ela se recusou a provar que tomou banho direito, deve ser punida, não é, Dri?

- Sim.

- Punida?

- Punida. E qual será a pena?

- Cócegas.

As duas jogaram a garotinha na poltrona e fizeram cócegas em suas axilas e pés. Sakura riu divertida, despreocupada. A diversão, no entanto, durou pouco. Ao se retorcer e rolar na poltrona, a toalha que a cobria se soltou e ela ficou nua. O constrangimento foi total quando Adriana e Patrícia viram marcas de agressões na região pubiana da criança.

- Desculpa, pirralha. Toma aí a toalha.

A garota se cobriu rapidamente e desviou o olhar para o chão. Adriana pegou as roupas dela.

- Toma aí. Estão limpas e secas. Se quiser, dorme aqui com a gente. Tem um quarto aqui sobrando.

- É o que a gente preparou para minha sogra, mas, graças a Deus, Zeus, Odin, Buda, ou qualquer outro, ela nunca usou.

A garota agradeceu sem jeito e foi para o quarto que, educadamente , Adriana indicou.