Maternidade - Parte 3

Capítulo 3

- Tá dormindo.

- Mais ou menos.

Patrícia riu baixinho e sentou no canto da cama da garota. Ajeitou o cobertor dela e perguntou:

- Faz muito tempo que aconteceu?

- Não quero falar sobre isso.

- Te disse que também fui moleca de rua. Já passei por coisas parecidas também. Pode confiar em mim.

A garota se cobriu toda com o cobertor, deixando apenas os olhos e o nariz de fora.

- Tô tentando esquecer.

- Se não quiser falar, tudo bem. Só que eu não vou deixar você ir para a rua de novo. Uma menininha e bonita desse jeito. E você viu que eu tenho bom gosto para mulher...

- Não jogo nesse time.

- Tem que concordar que a Dri é linda.

- Realmente.

- Pois é. As chances daquilo acontecer na rua novamente não são poucas.

- Eu sei, mas não tenho onde ficar.

- Fica com a gente por um tempo, depois regularizamos sua situação.

Mais tranquila e com mais confiança em Patrícia, Sakura sentou na cama e jogou o cobertor para o lado. Deixou escapar uma lágrima e com a voz um pouco engasgada, contou o que aconteceu:

- Minha mãe morreu tem um ano e poucos meses. Quem fez isso foi o velho, por isso fugi de casa. Na rua, eu me virava. Ser magrinha e baixinha tem suas vantagens. Sem querer me gabar, sempre arrancava muita comida e uns trocados sem ninguém perceber...

- Ainda bem que você não quer se gabar. E os moleques?

- No bairro onde costumo...

- costumava...

- No bairro onde costumava ficar vive só gente mais nova, da minha idade, ou um pouco mais velha. Uma vez, um moleque tentou fazer...coisas. Cortei ele com aquele estilete. Aí passaram a me evitar um pouco.

- Vida sofrida.

- É.

- Eu sofri assim também por um bom tempo. Cresci na rua. Até os doze anos, tinha uma casa, que eu usava para dormir, já que meu pai e minha mãe só sabiam beber. Quando tinha uns catorze, eles morreram. Virei puta, vivi na rua muito tempo ou em barraco vagabundo...

- E como saiu dessa vida?

- Foi complicado. Nunca fui tapada, então sempre tentei estudar, trabalhar com algo que chamavam de decente. Conheci um carinha, o Carlos. Na época, ele era estudante de arquitetura. Muito gente fina. Vivia discursando em defesa das classes mais pobres, lutando por melhorias no bairro em que eu vivia. Me arrumou um trampo legal e larguei de vez de dar... você sabe o que. Depois, conheci a Dri e dei o golpe do baú...

Sakura riu com o gracejo da mulher e bocejou, não escondendo o cansaço. Patrícia fez um sinal para ela se deitar e dormir.

***

Adriana se espreguiçou e recostou a cabeça no ombro de Patrícia, que passou o braço direito pelo pescoço dela. Bateu o pé impaciente, o advogado que as atenderia estava trancado com outra pessoa em sua sala há meia hora. A secretária dele sorriu gentilmente e repetia que logo o Dr. Moreira as atenderia.

- Será que vai dar certo?

- Eu espero que sim.

A porta da sala do advogado se abriu e dois homens de meia idade saíram. Um deles, Moreira, pediu para que as duas entrassem. Timidamente, as duas levantaram e o acompanharam.

A secretária ofereceu mais uma vez café ou água e as duas recusaram gentilmente.

- Do que as senhoritas precisam?

Adriana se adiantou a Patrícia, que estava inquieta na cadeira, e respondeu:

- Dr. Moreira...

- Por favor, só Moreira. Não há nenhuma necessidade de formalismos.

- Eu e minha companheira, Patrícia, passamos por uma situação peculiar. Tem uma criança morando conosco há algumas semanas e nós precisamos regularizar essa situação. Ela vivia na rua, fugiu de casa há mais ou menos um ano, quando a mãe morreu e o pai...

Patrícia completou:

- Abusou sexualmente da menina. Ela tentou me assaltar. Eu, quando era criança, tive uma história parecida. Pais bêbados, que morreram cedo. Vivi nas ruas e sei o quanto isso é terrível. Levei ela para comer alguma coisa e tomar um banho. Acabamos nos afeiçoando e como Dri e eu queríamos muito uma filha...

Moreira tomava nota de algumas coisas que elas falaram, fez algumas observações próprias e depois se dirigiu a elas:

- Entendo. Vocês duas não são ingênuas. Com certeza, conhecem o pior lado das pessoas e seus preconceitos. Acredito que até mesmo a família de vocês não os aceitem plenamente. Tecnicamente, não existe nada que as impeça de adotar a garota. Existe um processo longo, cansativo, pois é cheio de cuidados...

Adriana comentou:

- Afinal de contas, estamos tratando do futuro de uma criança.

- Isso. No caso de vocês, existe ainda um empecilho cultural. A vontade de vocês é linda, acredito que tenham estrutura para cuidar de uma criança e que viver com vocês é muito melhor que morar na rua, mas pode ser que encontremos uma certa resistência do judiciário e do ministério público em permitir a adoção por quem viva uma união homoafetiva.

Zangada, Patrícia murmurou:

- Claro, nós temos uma doença muito contagiosa. Deixem a menina morar na rua, é melhor para ela.

- É minha obrigação, Patrícia, mostrar a vocês todas as dificuldades do processo...

- É, eu sei. Só sou fula da vida com isso.

- Já passei por um caso parecido. Fiz o seguinte e se vocês quiserem mesmo meu serviços farei o mesmo com a caso se vocês: a ação será proposta por uma de vocês. Só uma vai adotar, até porque não é permitido que alguém tenha duas mães no registro. Existem algumas decisões permitindo, mas seria uma polemica a mais. Não vamos esconder nada sobre o relacionamento de vocês. Pode ser, no entanto, que criem dificuldades...

Patrícia se ajeitou na cadeira. Estava nervosa, queria muito que isso se resolvesse logo. Estava confiante que tudo daria certo, principalmente por que Adriana apertava sua mão e sorria confiante:

- O senhor mostra que conhece bem o caso. Tenho certeza que dará tudo certo.

- Com a graça de Deus.

- Vamos trabalhar para isso.

***

- Vocês duas.Venham aqui.

Patrícia e Sakura ainda ficaram observando o recém adquirido aquário e seus peixinhos dourados por um bom tempo. Adriana as chamou mais uma vez, com a voz mais firme e dessa vez foi atendida:

- O Moreira me deixou uma cópia da petição inicial do processo de adoção.

- Que é petição?

Patrícia brincou com o cabelo da garota e respondeu:

- É um pedido. No caso, nós vamos pedir a um juiz para você ser nossa filha. Especificamente, minha filha.

- Entendi.

- Tem umas coisas bem legais aqui. Ele coloca os dados da Patrícia. Conta que vocês se conheceram na rua e que ela também viveu nas ruas quando era pequena. Conta que você, Sakura, passou a viver conosco e que está feliz, sendo bem cuidada e longe dos perigos da rua.

- Comendo três vezes ao dia e sendo torturada todas as noites, enviada para campo de concentração, que vocês chamam de banheiro.

- Se eu quisesse uma porquinha, teria ido a fazenda.

- Ele comentou que eu e a Patrícia criamos um lar saudável e duradouro, que nos amamos e temos totais condições de criar uma criança. Depois ele citou leis, livros e decisões sobre adoção, sempre dizendo que não há nenhum impedimento por sermos homossexuais.

- Legal.

- Olha isso: “Negar a possibilidade do reconhecimento da filiação que tem por base a afetividade, quando os pais são do mesmo sexo é uma forma perversa de discriminação que só vem prejudicar quem apenas quer ter alguém para chamar de mãe, alguém para chamar de pai. Se são dois pais ou duas mães, não importa, mais amor irá receber.”, por Maria Berenice Dias.

Sakura balançou a cabeça positivamente, Patrícia sorriu e Adriana continuou:

- Tem mais. Ainda a Maria Berenice, “Todas estas mudanças impõem uma nova visão dos vínculos familiares, emprestando mais significado ao comprometimento de seus partícipes do que à forma de constituição, à identidade sexual ou à capacidade procriativa de seus integrantes. O atual conceito de família prioriza o laço de afetividade que une seus membros, o que ensejou também a reformulação do conceito de filiação que se desprendeu da verdade biológica e passou a valorar muito mais a realidade afetiva.

- Que que ela falou ai?

Adriana envolveu Sakura pelo pescoço com um dos braços e a beijou na nuca, depois explicou:

- Isso diz o mesmo que antes. Tudo o que importa é o amor. Dane-se se é do mesmo sangue, se é gay, negro, homem, mulher.

- Ah.

- Tem algumas decisões aqui também. Essa é bem bonita: “Adoção cumulada com destituição do pátrio poder. Alegação de ser homossexual o adotante. Deferimento do pedido. Recurso do Ministério Público.

1. Havendo os pareceres de apoio (psicológico e de estudos sociais), considerando que o adotado, agora com dez anos, sente agora orgulho de ter um pai e uma família, já que abandonado pelos genitores com um ano de idade, atende a adoção aos objetivos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e desejados por toda a sociedade. 2. Sendo o adotante professor de ciências de colégios religiosos, cujos padrões de conduta são rigidamente observados, e inexistindo óbice outro, também é a adoção, a ele entregue, fator de formação moral, cultural e espiritual do adotado. 3. A afirmação de homossexualidade do adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de empecilho à adoção de menor, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação ofensiva ao decoro, e capaz de deformar o caráter do adotado, por mestre a cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos outros jovens.

- Aí diz, Sakura, que a criança se sentia orgulhosa de ter uma família, pouco se importando se o cara é gay ou não. Foi abandonada pelos pais quando tinha dois anos e agora tem uma casa, quem a ama.

- Temos sorte.

As duas assentiram com a cabeça e as três se abraçaram:

- Realmente, temos sorte.

***

Patrícia caminhou com passos firmes, segurando-se para não sair correndo na direção contrária. Acabara de falar com o advogado. Ele explicou a situação. Tinham elementos a favor e contra. Ele sabia que o promotor não aceitava adoção por homossexuais, achava aquilo imoral. Entretanto, o parecer da assistente social foi favorável a ela. O juiz era uma incógnita. Era novo na comarca e nunca decidira nada a respeito.

- Preciso de uma cartada. Uma boa cartada.

Ela chegou na casa da sogra, abriu o portão e antes de apertar a campainha, deu um longo suspiro.