Saga de despedidas


Uma cidadezinha do interior. Primeiro dia de aula. Só festa. No transporte escolar nós ríamos muito quando nos tombos caíamos uns por cima dos outros,ele também, o motorista.
Estevão, o motorista, é um rapaz alto, moreno, um sotaque sulista, uns olhos claros e cabelos lisos e castanhos sempre despenteados. Diziam que se casara em outro estado contra sua vontade e abandonou a esposa. Mas nós nunca tocávamos no assunto com ele. O que sabíamos, com certeza, sobre o nosso amigo era que ele e uma loura sofisticada conhecida nossa haviam resolvido casar sem comunicar à lei nem à igreja e foram morar juntos porque ela esperava um bebê. Agora, depois dos meses de férias, o neném havia nascido e era um lindo bebê.
No colégio o assunto do dia foi a minha novidade. Todas as colegas admiradas com a aliança no meu dedo. Havia noivado durante as férias e elas nem sequer conheciam o meu noivo. Logo o assunto se esgotou e começaram as aulas. Na saída meu pai estava nos esperando. Ficamos eu e meu pai, no carro, a esperar meus outros dois irmãos saírem da aula. Observava a gritaria da turma saindo e fiquei rindo, lembrando da divertida viagem daquela manhã.
No dia seguinte, acordei tarde, como sempre e acabei saindo sozinha. Estevão, passou por mim com o carro cheio, em grande velocidade. Arriscou-se a por a cabeça fora da janela e gritou: - Eu volto sozinho.
Continuei andando. Ele voltou. Sentei no banco da frente.
Por que ele olhava tanto para minhas mãos? Pensei.
Arrancou de supetão, bati a mão no pára–brisas do carro. A aliança tiniu ao bater no vidro. Fiquei surpresa com o pensamento que tive. Ele confirmou minha suspeita.
-Então você está mesmo noiva. Não acreditei quando me falaram. Quem é ele?
-Você não conhece.
Ele calou. Arranjei outro assunto.
-Como vai o seu filho? Perguntei despistando.
-João está lindo. Um meninão! Comentou alegre. Você vai vê-lo!
- Deve ser bonito o seu filho. A mãe dele é bonita.
Nesse dia faltou um professor e saímos mais cedo.
Ao passar no pátio do colégio, eu e minhas duas melhores amigas: Dica, a mais íntima e Elza, avistamos a Kombi.
Ele vinha dirigindo devagar. Ficamos admiradas, até que percebemos o motivo do cuidado: ele dirigia com uma só mão e com a outra segurava algo. Quando parou perto de nós, vimos no seu colo um menino de uns três meses de idade, apenas de fraldas.
Dica falou: - Você é doido? Como é que com um calor desses, sai com este menino, não tem medo dele ficar doente?
E eu já com o menino no colo:
-Ele é lindo. E a Sara, ela viu você sair com o menino?

-Ela não estava em casa. A tia estava tomando conta da criança.
Aparecia agora na sua voz e no rosto, uma tristeza inconsolável. Ficamos caladas.
Arrastou o carro com cuidado e de vez em quando brincava com o neném no meu colo.
Parou na porta da casa dele e devolveu a criança para a tia.
A vida continuava naquela alegre e barulhenta rotina de aulas, fofocas, acordar tarde, perder o carro, andar a pé, pegar carona pra escola.
Numa dessas tardes chuvosas de maio, estava deitada, quando ouvi uma insistente buzina no portão.
Corri pra varanda. Estevão vinha correndo na chuva do carro para a casa.
Parou perto de mim e estendeu-me um envelope.
-Não precisa ficar com medo, não é comunicando a morte do seu noivo.
-Deixe de brincadeira! Estava tentando abrir o envelope quando ele correu no meio da chuva e já no carro gritou:
-Mais tarde eu venho lhe buscar.
Não entendi antes de ler o envelope.
Um ofício da Secretaria Municipal de Educação convidando-me a comparecer a uma reunião às dezesseis horas, daquela mesma tarde, para maiores esclarecimentos.
Pura felicidade! Era a resposta à sugestão feita ao meu professor de Português, diretor naquela secretaria.
A possibilidade de começar minha carreira de professora. Dinheiro meu!! Poderia fazer o que bem entendesse com ele.
Eu tinha então dezessete anos.
Contei pra todo mundo em casa e corri pra me arrumar.
Sabia que só tinha uma hora. Ele aproveitaria certamente o horário da distribuição da merenda escolar para me levar.
Moramos na periferia, uns quatro quilômetros longe do centro.
Pouco depois das quinze horas, quando ele vinha trazer a merenda para a escola daquela rua, buzinou no portão e eu já estava pronta.
Entrei no carro e rumamos para a escola onde eu possivelmente ia lecionar, para entregar a merenda lá também.
Não havia aula por falta de professora, mas uma senhora recebia a merenda e distribuía com as crianças daquela granja.
Elas estavam lá, mesmo sem ter professora.
Era só uma sala de aula, bem na entrada do sítio.
Gostei do ambiente. Magnífico ar livre.
E àquelas crianças carentes eu poderia dar um pouco de alegria e conhecimentos.
Tudo dependia daquela reunião.
Chegamos finalmente ao local da reunião. Entrei ansiosa. Ouvi com toda atenção.
Fui contratada, recebi as instruções e na semana seguinte comecei o meu primeiro trabalho oficial.
Comecei também fazer acrobacias pra conseguir ir ao colégio, voltar e estar as treze horas na escola. Participar da educação física e assistir as reuniões de professores toda sexta-feira.
Meu pai está sempre me levando para o colégio , para a escola, mas com o horário de trabalho dele, não pode fazer tudo.
Estevão então, me leva acima e abaixo nos horários possíveis e impossíveis, na minha maratona para trabalhar e estudar.
Isto nos aproximou muito. Chegaram as festas juninas. Duas semanas de férias. Eu estava cansada.
Mas não era o trabalho ou o estudo a minha preocupação. Era o meu noivo. Ele se mostrava ciumento e até agressivo. Morava na capital e todos na família o admiravam, mas eu apenas gostava dele. E aquele comportamento possessivo me assustava. Gostava de estar noiva. Parecia importante.
Numa dessas demonstrações de ciúme eu lhe entreguei a já famosa aliança, e terminamos o noivado.
No dia seguinte adoeci. A minha família estava bem chateada. Meu pai ficou uma semana sem falar comigo, nem perguntar por mim. Aquele noivado era muito importante para ele. Questões religiosas .
Aguentei firme. Recomeçaram as aulas e eu ainda estava acamada. Minha irmã me substituía na escolinha.
Não queria pensar mais naquele noivado. Não queria sofrer, nem fazer ninguém sofrer. Fui deixando o tempo passar, ali no quarto.
Voltei à vida. Ao corre-corre de sempre. Havia um novo motorista no nosso transporte.
No Movimento Estudantil e nos projetos para a formatura encontrei um namorado de infância. Amor platônico e impossível.
Começamos então a namorar.
Não vi o Estevão por muitos dias.
Quando o reencontrei estávamos muito mudados. Eu parecia ter amadurecido muitos anos naqueles dias. Estava calma, serena, sem angústias. Ele andava triste, reclamando de tudo, berrando com os meninos no transporte. Eu imaginava seus problemas sem fazer perguntas.
Daí por diante, a minha vida foi se modificando. O meu namoro, dito impossível, foi tomando cada dia mais espaço em minha vida. As colegas comentavam e achavam romântico. Aquilo porém, era muito sério pra mim.
Uma tarde, quando vínhamos da escolinha onde eu trabalhava, Estevão passou sem parar na porta da minha casa, dizendo que precisava falar comigo e ia parar num lugar seguro. Paramos em frente a casa da minha melhor amiga , à sombra da amendoeira.
- Mirza, eu gosto de você, mas estava esperando a ajuda do tempo, fazendo você ver isso sozinha. Mas como vejo que o seu coração só a leva pra bem longe de mim, hoje eu resolvi ser bem claro. Eu quero casar com você. Sei que sua família não quer o seu namoro e eu posso ajudá-la. Você ficou noiva e eu esperei que passasse. Mesmo agora, que você diz amar, eu ajudo a esquecê-lo. Basta que diga sim ou não. Já está tudo preparado.
Ele tinha mesmo planejado tudo e me descrevia os detalhes minuciosamente.
Tentei convencê-lo a desistir daquela idéia.
- Não adiantam seus argumentos, é só dizer sim ou não.
Eu disse: - Não.
Desci do carro e entrei na casa da minha amiga. Desde aquele instante nunca mais o vi.
Hoje, na janela de um pequeno apartamento, contemplo a paisagem de sempre.
Telhados, gatos preguiçosos, choro de criança, barulho de carros, buzinas, tudo muito indiferente à minha solidão.
Onde estão todos?
Nestes vinte anos eu não deixei partir só o Estevão.
Muita coisa se foi em nome daquele amor impossível.
Os amigos, a família, os dez irmãos, a minha cidadezinha, tudo eu deixei por Mário.
Mas nada adiantou. Naquela relação só eu amava.
Agora me pergunto: por que não consegui?
Não há nada a fazer. Nada me devolverá o tempo perdido, correndo atrás do vento.
A grande cama de casal me traz à realidade. Não será só a noite passada que eu dormi sozinha. Muitas ainda virão.
Eu me sinto vazia, vazia, vazia. Perdi a grande batalha da minha vida. Mas este sentimento parece ser melhor que a angústia de antes.
Eu ainda acredito em mim.
Lutei todos esses anos cegamente contra tudo e todos. Agora vejo bem a realidade. Posso lutar ainda mais e melhor.
Visto-me e saio. O trabalho é a minha primeira promessa de realização.
Procuro outra paisagem. Vou renascer.