ROSICLEIDE

ROSICLEIDE

O ônibus rodava velozmente pela velha estrada. A noite era escura e sem lua e os passageiros cansados, tinham os membros adormecidos e doloridos, após horas e horas de cansativa viagem.

-- O pior é que ainda falta muito tempo para chegar ao Rio de Janeiro, pensava Rosicleide, ansiosa por chegar à Cidade Maravilhosa e começar logo uma nova vida.

Finalmente uma parada. Estremunhados, os passageiros desceram um a um, os altos degraus do ônibus, felizes pela oportunidade de esticar um pouco as perna e aliviar a bexiga. Algumas crianças pequenas, despertadas repentinamente, puseram-se a chorar assustadas, mas os maiores correram a pedir doces ou refrigerantes aos pais. As mulheres dirigiram-se rapidamente para as “toaletes”, arrastando os menores pela mão. Talvez por estarem livres do desconforto, por algum tempo, ninguém reclamou do um cheiro das privadas e quem sabe? Por estarem habituados à escassez de água e impossibilitados de observar hábitos rigorosos de higiene, também não reclamaram das moscas que voejavam em torno das fracas lâmpadas e até mesmo por cima dos alimentos expostos no balcão.

Passados quinze minutos, os passageiros retomaram seus lugares, conformados com mais algumas horas da cansativa viagem, esperançosos de encontrar no final uma resposta para suas preces e a almejada oportunidade de uma vida melhor e menos áspera.

Rosicleide, semi-adormecida, dava livre curso aos pensamentos:

-- Como será a vida na cidade? Sei que deve ser tudo muito diferente, mas diferente como?

Será que me acostumarei logo? Não conheço ninguém lá. Minhas primas foram para São Paulo, onde há muito mais oportunidades e se pode trabalhar em fábrica, com carteira

assinada, direito a férias... Mas o que me atrapalha é o nome: Rosicleide da Silva, isso lá é nome de gente? Só porque meu pai se chama Rosalvo e minha mãe Marioneide? Como posso pensar em ficar rica e virar patroa? Por isso mesmo quero ir para um lugar onde ninguém me conheça, para poder escolher um nome decente...

Enquanto as rodas corriam velozes, eliminando as centenas de quilômetros que a separavam da realização de seus sonhos, a bela e jovem morena ia desfiando na memória os mais diferentes nomes que poderia adotar na nova vida: Ketty, Kelly, Ketryn (tudo com ípsolon, disso fazia questão absoluta). Rozy? Senhora Rosy Raymond, pronto! Escolhido o novo nome, conseguiu dormir sossegada.

Não foram fáceis os primeiros tempos, mas Rosicleide, ou melhor Rozy, era esforçada e não escolhia serviço; foi garçonete, babá, cozinheira, arrumadeira, vendeu sanduíche na praia... Até que conheceu o Dr. Ramiro Palhares.

Foi num forró, onde estava com algumas amigas. Já estava cansada de tanto dançar e pensando em voltar para casa, quando o avistou: alto, magro, bigodinho fino (os homens ainda usam bigodes?), cabelo levemente comprido, preto e liso, terno, uma elegância só!

Foi bater o olho e pronto! Apaixonou-se. Quer dizer: apaixonaram-se. Exemplo vivo de amor à primeira vista.

__ Também, com este nome! Dizia Rozy. Só poderia ser gente fina. Além de todas as qualidades, era defensor ferrenho da importância da família, da moral e dos bons costumes.

__ Precisamos nos casar. Dizia ele. Assim que concluir uns negócios importantes que tenho engatilhados, vamos acertar nossa situação. Quero conhecer sua terra e seus parentes.

Rozy temia sua reação quando soubesse que mentira sobre seu nome, pois um homem de bem não suporta ser enganado, mesmo que seja em uma coisa tão simples e, para ela este era um detalhe sumamente importante, mas confiava em seu amor e generosidade.

__ O que ele faz? Perguntavam as amigas. De onde tira tanto dinheiro?

__ Ora! Ele é um doutor. Doutor ganha bem.

__ Mas que espécie de doutor? Advogado, médico, engenheiro?

__ Médico sei que não é, acho que é advogado.

__ Acha? Se vão mesmo se casar precisa conhecer melhor o seu noivo. Tome cuidado.

__ Vocês estão é com inveja, isto sim!

Já fazia algum tempo que trabalhava como assessora do Dr. Ramiro e tinha por obrigação, cuidar de seu bem estar. Fazia de tudo um pouco. Como estudara até a oitava série, tinha condições de anotar recados, organizar sua agenda e cuidar das despesas e da organização de sua casa.

__ Tenho uma importante missão para você. Disse ele um dia. Sei que não será muito agradável, mas sei também que é capaz de desempenhá-la com sucesso.

__ Seja o que for, respondeu, farei com satisfação.

__ Tenho um amigo muito importante, político dos grandes, que precisa fazer uma viagem e não tem com quem deixar a mãe, já muito velhinha. A senhora que cuidava dela adoeceu e ele não tem tempo de procurar uma pessoa de confiança para ficar com ela.

__ Mas é só isso? Cuidarei dela com todo carinho.

__ Eu sabia que sua resposta seria esta, mas há um pequeno detalhe

__ Seja o que for...

__ Esta senhora está esclerosada e diz coisas absurdas. Será preciso ser bem rigorosa e não deixa-la sair nunca, nem telefonar ou visitar ninguém.

__ Coitada! Mas por quê?

__ Ela não está em seu juízo perfeito, tem mania de dizer que foi seqüestrada, quer chamar a polícia e é tão convincente, que as pessoas acreditam no que ela diz. Como ele é um político muito importante, isso pode prejudicar sua imagem de homem público, entende?

__ Claro, respondeu ela. Realmente vai ser um pouco chato, mas ele volta logo?

__ Coisa de poucos dias.

E assim, Rozi foi levada até uma casa de subúrbio, onde morava a mãe do político. Estranhou a simplicidade das acomodações, mas ele explicou que a velhinha adorava aquela casa e se recusava a morar em lugar elegante ou mais confortável.

O noivo pediu que vestisse um uniforme de enfermeira completo, prendesse o cabelo sob um chapeuzinho branco e usasse sempre máscara sobre a boca, pois a frágil paciente era muito propensa a resfriados e rinites.

Olhando-se ao espelho quase não se reconheceu, parecia uma pessoa totalmente diferente e isso a deixou incomodada, mas enfim, era um pedido dele.

Ficou sozinha na casa em um local retirado, longe de tudo, mas Dr. Ramiro afirmou que viria diariamente saber se precisava de alguma coisa e mais uma vez prometeu que dentro de poucos dias acertariam sua situação.

Quando D. Zulmira (era o nome de senhora) acordou, aconteceu exatamente como ele havia previsto: A mulher reclamou e chorou, dizendo que estava na mão de raptores e que se ela não fazia parte do bando devia provar, chamando imediatamente a polícia. Foi difícil acalmá-la e fazê-la tomar o calmante indicado. Enfim, quando a viu novamente dormindo,

foi para a cozinha preparar o jantar, esperando que ao acordar novamente, a mulher estivesse mais calma e pudessem conversar.

Um mau pressentimento a perturbava. Ligou o radinho de pilha que trouxera para se distrair um pouco, pois nem televisão havia na casa.

De repente, a música foi interrompida para um noticiário policial importante.

__ A polícia acaba de descobrir o nome do chefe da quadrilha que raptou na noite de ontem uma senhora de 72 anos e pediu um resgate de R$500.000,00 para a família da vítima. Trata-se...

A esta altura, ela já nem ouvia mais. Sabia agora com toda certeza, que fora usada e enganada: a casa sem nenhum meio de comunicação, a velhinha dopada com fortes sedativos...

Rosicleide era suficientemente inteligente para saber que a corda arrebenta sempre do lado mais fraco, que por sinal, era ela. Se não agisse com rapidez, por certo amargaria muitos anos atrás das grades.

Trocou de roupa e saiu rapidamente da casa, deixando a porta destrancada para facilitar a fuga da prisioneira ou a entrada da polícia. Por sorte levara algum dinheiro, que lhe possibilitou tomar um ônibus tranqüilamente.

Dona Zulmira não poderia reconhecê-la, pois só a vira vestida de enfermeira e com o rosto parcialmente encoberto pela máscara.

Chegando ao seu apartamento procurou agir com naturalidade. Preparou uma pequena mala de mão e guardou consigo o dinheiro que conseguiu economizar durante aqueles 3 anos.

Novamente a viagem de ônibus, mas desta vez em sentido contrário. Levava muita mágoa por ter sido enganada e quase nenhuma ilusão. Que diferença da outra viagem! Mas era bem feito! Nesse tempo todo quase não se correspondera com a família, com medo de que alguém visse nas cartas o seu verdadeiro nome que, aliás, agora ela bendizia, pois a polícia procuraria por toda parte uma jovem mulher que todos conheciam apenas como Rozy e que naturalmente, seria denunciada pelos bandidos como chefe da quadrilha e responsável pelo seqüestro.

__ Antes ser Rosicleide da Silva em liberdade, do que Rozy Raymond atrás das grades.

Soltou uma sonora gargalhada e todos no ônibus a olharam admirados. Ninguém poderia imaginar o motivo de tanta alegria.

Dois anos depois, em sua cidade natal, casou-se com um empregado de supermercado que se chamava Josismar da Silva e viveram felizes para sempre.

N.A. A primeira filha do casal recebeu nas águas lustrais do batismo, um pomposo nome, que nada tem a ver com o nome de seus pais: Josiscleide da Silva e Silva.