UM PRESENTE ESPECIAL

UM PRESENTE ESPECIAL

Olhou para as mãos calosas, maltratadas por anos sem fim de luta diária contra o seixo e a lama dos rios, não acreditando no que seus olhos viam. Imaginou o largo sorriso de poucos dentes que se abria na máscara de barro escuro do que fôra seu rosto e espremeu entre os dedos enrugados a bela pepita de muitos quilates que a deusa Fortuna, tanto procurada, acabara de mostrar-lhe.

Enfim, mais de dez anos depois, a confirmação de sua mais acalentada esperança, de sua mais secreta certeza, o término definitivo das agruras, das necessidades todas, das desesperanças que consomem nossas almas e amargam nossas vidas. O sertanejo, barbudo e descarnado, com o peito em fogo e o coração a galope, devolveu o ouro ao lençol pardacento que esconde os mistérios de um rio, temeroso que um servo da cobiça ou um escravo da inveja tivessem visto o tamanho de sua felicidade.

Com o olhar atento a tudo em sua volta "Zé Rai" escutou os céus, o sussurro do vento, os ruuídos da terra, o canto dos pássaros e das águas... agora, era preciso analisar cada passo e cada gesto, repensar cada movimento a ser seguiido. Serra Pelada, próximo dali, lhe ensinara que a felicidade alheia é cálice de fel e a riqueza do vizinho um bem a ser tomado a qualquer custo. Já dizia sua avó que "cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém".

Resolveu, enfim, enterrar a pepita de ouro bruto, com quase um quilo, entre as portentosas raízes de solitária castanheiraà beira-rio plantada, estranho vigia de barcos a motor, modestos "cascos" e ariscos peixes que por lá transitavam vez ou outra.

Marcou bem o local num canto da memória e voltou nervoso e ressabiado para casa, humilde casebre de estacas e palha de anajá, com meia parede de estuque protegendo a intimidade da família, dona "Nicota" e o presente de Deus, anjinho moreno de saia, Kátya Regina.

Quando encostou a "montaria" no arremedo de cais a maré estava baixa. Meteu-se até o joelho no lodaçal, puou a canoa para o seco, emborcou-a amarrada e, sob os olhares curiosos dos poucos que se achavam no minúsculo vilarejo naquela hora, adentrou no barraco.

Dona Anita levantou sobrancelhas com ar interrogativo, "Catita" correu para abraçar o pai e até "Tiquinho", o vira-lata da família em geral desanimado, demonstrou certa alegria.

José Raimundo falou mais alto do que de costume, fingindo desalento:

-- "Me deu um "febrão" danado, "Nicota", não quiz nem ficar mais tempo. Tenho que ir à cidade comprar quinino e umas "pírolas", senão a bandida me joga na rede sem pena".

Almoçou pouco, quase não tocou no prato, a preocupação enchendo todos os espaços vazios no seu corpo. Precisava manter seu achado em segredo, por mais que custasse.

Partiu na hora da sagrada agonia, a sombra da morte a cobrir-lhe os trôpegos passos, apavorado que seu súbito fim sepultasse o belo futuro recém-nascido para êles. Voltou noite alta com a mezinha de costume para combater malária e febre amarela, além de um farnel caprichado que lhe permitiria ficar à modorra por uns bons dias. Não esqueceu do pedido da filhinha... um belo colar "havaiano" de duas longas voltas, cheio de flores de tecido e "pedrinhas" multicores de plástico e de madeira. Mas, só o daria adiante, quando da viagem.

Se a vida é um mar de rosas todo amanhecer é sempre lindo. "Zé Rai" acordou bem disposto, os olhos brilhando e, logo após o café, disse à esposa que iria caçar, sem hora para voltar. Preparou os apetrechos todos, alguns instrumentos extras e até um alvo lençol, surrupiado às escondidasdos guardados da mulher.

Embrenhou-se na mata o mais que pôde, parando aqui e ali para certificar-se de quem ninguém o seguia. Só muito avante tomou o rumo do rio, onde a castanheira amiga protegia seu fabulosos achado. Tornou a embrenhar-se no capão cerrado até solitária clareira, onde passou a esmerilhar a pepita, reduzindo o sólido a pequenas esferas e cubos e recolhendo ciosamente o valioso pó de ouro em um saquinho de couro.

O sol dividiu o tempo em duas partes, crestando peles e cérebros mas "Zé Rai" estava absorto demais em sua faina para perceber o calor infernal. Terminada a tarefa, colocou o resultado nas pontas ôcas de grosso bambu, ocultando tudo sob um tampo de barro. Por fim, limpou das mãos os restos de esmalte colorido, enterrando bem fundo no solo úmido os vários vidrinhos quase vazios. Só então sorriu aliviado, dando um suspiro profundo.

Era hora de voltar... carecia no entanto matar qualquer coisa de pena pois, afinal, êle saíra para caçar e poderia levantar suspeitas se voltasse de mãos vazias. Não lhe foi dificil acertar um dos belos maguaris que faziam a sesta às margens do rio, após lauto "almoço".

Chegou exausto em casa, mais pelo peso do colossal segredo que suportava sozinho, para que todos não corressem perigo de morte. Sussurrou para "Nicota", porque sabia que as paredes têm ouvidos:

-- "Avie essa "penosa" assada para viagem, porque vamos para a pista amanhã bem cedo. "Catita" eu aviso quando fôr a hora de partir".A cara do marido não deixava dúvidas... dera com os costados num veio. Dez anos vivendo e sofrendo juntos transformara o rosto de ambos num livro aberto, que dispensava papalvras.

Dona Anita foi prestes acender uma vela para Santa Rita de Cássia, agradecendo o milagre e pedindo proteção. Naquelas êrmas paragens felicidade e desgraça eram como irmãs gêmeas, uma não vinha sem a outra.

Velaram o sono da filha, ansiosos demais para dormir, os minutos martelando compassados a paciência de cada um, as horas espichando-se noite a dentro como se fosse o princípio dos séculos.

"Zé Rai" acordou a filha com o presente especial, o vistoso colar de pedras novas a substituir o plástico ordinário, tapando a pequenina boca para que não gritasse.

-- "Catita", meu anjo, olhe aqui! Bem do jeito que o papai tinha lhe prometido... demorou, mas 'taí"!

-- "Vige Maria, meu Deus, como é lindo. E ra só um negocinho... nem percisava sê tão bunito"!

-- "Qual o quê, meu tesouro... se tudo correr bem, vou te dar aquela bonecona que fala, lá da Estrela. arrume-se, "gitita", vamos partir já-já"!

Saíram madrugadinha, os poucos viventes que assistiram a cena murmuraram desconfiados, enquanto o trio palmilhava os muitos quilômetros que o separavam do "aeroporto" no coração da amazônica selva, mera reta de pó e poças de lama. Nessa longa viagem é que imperava o perigo e a fervorosa oração de dona Anita visava evitar tal destino.

"Zé Rai" caminhava em silêncio, o coração na boca, pois a filha poderia passar pelo pior, pela má sorte que atingira tantos antes dele, alguns tendo perdido naquela estrada não só o dinheiro e a honra mas também a vida. A família já estava avisada: nenhuma reação, nem um pio de protesto, nada que irritasse o humor dos amigos do alheio. Que se levasse tudo... era mais importante continuarem juntos, vivos !

Nem bem findara seu pensamento quando surge das toiças de matagal diante deles dois meliantes de assustadora figura, "mineiros" do mal saidos das profundas do Inferno. Diz o primeiro:

-- "Ora, ora, ora... aonde vão os pombinhos com tanta pressa"?

-- "Será que estão indo à Caixa depositar algum ouro"?, retruca o outro.

-- "Mas que nada, compadres... vamos só visitar uns parentes lá na cidade", tenta disfraçar "Zé Rai", com um fio de voz e puxando a filha para junto de si, com ar protetor.

-- "Bela "quengazinha" você tem aí, macho; quando é que ela vai lá prá "casa de Madame"? Olha, eu quero inaugurar a "bichinha" !

José Raimundo ferveu de ódio incontido nos seus brios de pai amoroso. Com muito custo "Nicota" o impediu de praticar uma besteira e, tomando a pulso a situação, disse-lhes:

-- "Levem o que quiserem mas, pelo amor de Deus, não nos façam mal"!

Os salteadores entreolharam-se e depois, aproximando-se das vítimas, apalparam "Zé Rai". Em poucos instantes deram com a bolsinha de couro, com as faíscas de ouro, escondida no baixo-ventre de José Raimundo, sob a esgarçada cueca. Deram vivas entre sí, gargalharam, deduzindo que em algum canto da tralha que traziam havia bem mais.

O assaltante com cara de Satanás retirou do bolso afiada navalha e, com ar sugestivo, limpando o canto das imundas unhas, perguntou:

-- "Então, mestre, vai dizer logo onde está o grosso ou quer que o mano abra outra boca abaixo do queixo... ai da havaianinha com esse lindo colar, "vizinho"? José Raimundo estremeceu pois o presente dado à filha era algo sagrado, seu único elo com Kátya Regina na Terra, nem por um segundo se arriscaria a perdê-lo. Confessou entre soluços, a voz embargada pela decepção, o desgosto amargando cada sílaba, que o resto do ouro estava dentro do frango assado, camuflado em meio à farofa de ovo.

Levaram-lhe tudo, até mesmo os suados trocados que pagariam a breve viagem dos três à cidade próxima, nascida do nada em poucos dias graças a febre da fortuna fácil. Sentados no barranco à beira da estrada, "Zé Rai" consolou-as declarando:

-- "Está decidido, vamos assim mesmo! Vocês precisam se distrair para esquecer o susto! O "seu" Richardes me cede as passagens de avião fiado, êle já me fez isso antes. Égua, sô, vam'bora" !

Para "Catita" o vilarejo desordenado e barulhento era coisa de outro mundo, um espanto, um troço que só haveria na Lua, sabe Deus onde mais. Dona Anita analisava com frieza o lugar; comera o pão que o diabo amassou em cidade semelhante, antes que José Raimundo tramasse sua fuga de um dos muitos mafuás dominados com mão de ferro por cafetinas balzaquianas apelidadas pela "homarada" de... "madames".

Estava profundamente triste com o infortúnio do marido, cujos sonhos foram degolados pelo fio cobarde de uma navalha,. "Zé Rai" parecia ter se recuperado bem do trágico golpe do destino.

Como o comércio local funcionava quase exclusivamente à base de "cadernetas" e vendas fiado, êle pode tomar sorvetes com a família e passear pelas redondezas até que a Caixa abrisse as portas, pontualmente às 10 horas.

Levou ambas ao Banco, oásis refrigerado e celestialmente limpo, onde sentaram-se sobre nuvens, digo, poltronas. Quando o pai pediu à filha seu belo colar, dona Anita protestou com veemência:

-- "Zézito, meu nêgo, você enlouqueceu de vez? Ela acabou de ganhar a jóia e você já quer dar fim no presente"?

-- "Confie em mim, "Nicota", sei o que estou fazendo. "Catita", minha flor, eu preciso de teu colar agora"!

De olhos arregalados, a menina concluiu que, se sua mãe aceitara a decisão do marido, só lhe restava anuir ao pedido do pai, cujo tom de voz não admitia réplica. Com o badulaque nas mãos, dirigiu-se ao setor de pesagem de ouro bruto, pepitas e ouro em pó.

-- "O que é isso, meu camarada, algum tipo de brincadeira"?!, perguntou o funcionário, mirando "Zé Rai" com ar interrogativo.

-- "Por favor, quebre as "pedrinhas" coloridas do colar, porque é tudo de ouro do melhor quilate"!

Juntou gente de todo canto para ver a novidade, a Caixa quase parou para que admirassem o belo estratagema usado por José Raimundo para trazer com sucesso sua pequena fortuna até a cidade. Virou herói por um dia, almoçou de graça com a família, foi apadrinhado e elogiado por quantos souberam do "causo", que voou Estado afora como periquitos na chegada do verão.

Na manhã seguinte "Zé Rai" voltou de "voadeira" ao casebre que os acomodara todo aquele tempo. "Tiquinho" estava pele e osso, morto de saudade de "Catita" mas atento a tudo e guardando como podia a casa e as coisas da família.

Levou só o que era importante: fotos, lembranças várias, o vestido de noiva de "Nicota", quadros e poucas coisas mais. O resto era de quem quizesse ou pudesse pegar. Saiu em silêncio, sem nenhum adeus, pois quem ficava estava cumprindo seu tempo de purgatório aqui mesmo na Terra.

O "dotô" José Raimundo é hoje feliz fazendeiro nas Minas (epa!) Gerais, dona Anita remoçou vários anos e a jovem e esbelta Kátya Regina guardará para sempre a enorme boneca da Estrela que fala "mamã", fecha os olhinhos, mama e até faz "pipi" se a dona dela quizer.

"Tiquinho" ficou irreconhecível, mais parecendo um leitãozinho cevado, só que "com pernas de pau".

"NATO" AZEVEDO