EU SOU NORMAL

Dr. Edson não era o que se poderia chamar de um homem comum... Certamente que não, tinha lá suas peculiaridades.

Apesar de ser um médico bem sucedido profissional e financeiramente, vaidoso e amante do bom gosto, era uma pessoa extremamente simples e aquele seu ar despojado era cativante...

Mas não pensem que fazia amizades com qualquer pessoa, era radical, se não gostasse de algo se fechava e, apesar disto, não deixava de ser cordial e educado. Colega era de todos...

Nunca conheci uma pessoa tão sovina... Tinha um grande defeito: não colaborava com dez centavos para comprar o lanche e olhem que era o primeiro a sentar-se à mesa.

Durante os seis anos que trabalhamos juntos ele contribuiu com um real para a nossa “cotinha” num dia de Natal e uma outra vez, conseguimos a façanha de um subsídio assombroso: R$5,00 para o almoço de Ano Novo em que estávamos de plantão.

Éramos bons amigos, e tínhamos muito em comum, principalmente gostar de brincar, contar piadas e sorrir. No dia em que coincidia de trabalharmos juntos no plantão, era uma verdadeira festa. Tristeza não existia e os colegas sorrindo diziam:

- Estes dois parecem abobalhados, não sei do que tanto riem.

Ele piscava os olhos, fazia um sinal de positivo com o polegar e respondia:

- Vivemos de bem com a vida, somos felizes!

Andávamos sempre juntos, às vezes abraçados, ouvíamos música compartilhando o fone de ouvidos, conversávamos também sobre o lado sério da vida... Nunca tivemos problemas, uma rusga sequer. E por mais das vezes os colegas ouvíamos:

- Se não a conhecêssemos e não soubéssemos quem é o Dr. Edson... Diríamos que vocês têm um caso...

Ele, como eu, adorava música. Muitas vezes na madrugada, quando chegava algum paciente acidentado, íamos providenciar algum procedimento como curativo ou sutura, começávamos a cantar e conversar... Dizíamos:

- Vamos ensaiar para a gravação do cd!

Era realmente hilário e o doente, apesar de sentindo dor ou medo, normalmente entrava no embalo, começava a conversar, sorrir e cantar conosco... Neste caso, só cantávamos músicas do povão, as mais apreciadas pelas massas... Afinal o objetivo era mesmo tornar o momento descontraído e deixar o cliente alegre.

Bom, quando estou muito cansada ou tensa costumo dar uns gritinhos, cantar em voz alta, ensaiar uns passos de dança ou pular por uns instantes... Há muito tenho este hábito e sinto-me mais aliviada depois que coloco algum deles em prática.

Neste dia eu ia pelo corredor e, repentinamente, comecei a cantar e dançar. O Dr. Edson, que vinha logo atrás e começou a rir e perguntou:

- Que é isto? Está “surtando”?

Olhei para ele sorrindo, esperei que se aproximasse e falei com seriedade:

- Doutor Edson, eu não sei... Mas de quando em quando tenho essa vontade de gritar, ou cantar, pular...

E relatei um caso:

- Imagina que outro dia estávamos assistindo televisão lá em casa e, de repente, senti um silêncio tão pesado que até doía. Olhei para meus filhos... A caçulinha estava com o Bob (o nosso gato) no colo... Aquele marasmo... Não agüentei, dei um grito que todos pularam assustados. O pobre do gato disparou numa carreira em direção a porta da rua que só dava para enxergar a cauda crispada. As crianças perguntaram, abismadas, o que estava acontecendo e eu respondi que era por causa do silêncio que estava muito enfadonho... Foi aquela algazarra.

Após o relato, veio-me à boca a pergunta que não queria calar:

- Doutor este meu comportamento é normal?

E, fui logo fazendo outra observação:

- Olhe só, outro dia eu estava com uma crise de identidade, meio aborrecida e comentei com minha mãe o desejo de ser uma pessoa diferente... Queria ser um pouco irresponsável, não me preocupar tanto com as coisas, deixar de ser tão certinha, previsível e normal... Ao que minha mãe respondeu:

- E desde quando você é normal? Eu fiz tudo para que ela me explicasse o porquê, mas ela não me respondeu, apenas sorriu... De lá para cá fiquei com esta dúvida...

- O senhor acha que sou normal?

Ao que ele respondeu:

- Bem, se sua mãe, que a carregou nove meses na barriga, tem dúvidas... Eu não vou dizer mais nada...

Após uma crise de riso que quase nos leva aos prantos, chegamos a seguinte conclusão: eu era NORMAL. Ele confidenciou-me que também tinha os mesmos hábitos... Ficou decidido então que ambos éramos NORMAIS, os outros sim, tinham problemas.

Não é necessário destacar que o acontecimento foi motivo de muito riso e assunto para muitos dias de conversa...

Meu amigo partiu para sempre. Foi tudo muito repentino... Mas lembro dele com tanta alegria, por conta das poucas e boas que aprontamos e da visão especial que tinha da vida, que tenho certeza absoluta: onde quer que ele esteja continua muito feliz e normal assim como eu também sou até hoje.

Ceiça Lima
Enviado por Ceiça Lima em 18/05/2009
Reeditado em 21/05/2009
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