Tribos

Debaixo da luz forte do ziguezague comercial, bateu-me a ânsia daqueles que sentem por um momento insuportável estar-se. O incessante vai e vem da imbecilidade contornava giros perfeitos na base estomacal. Jumentos com chapéus de palha pilotavam máquinas que seus antepassados nem sonhavam com a possibilidade de criação. Esse mesmo tipo de animal se auto punha uma classificação com orgulho e exibia suas insígnias com poder. Como uma boa tribo oriunda daquelas do início da trajetória humana sobre esta terra, eles tinham sua própria música e o seu jeito de chamar a chuva. Mas usavam botas!

E nesse meio onde pessoas tentavam se guiar em meio à luz da razão – se é que ela verdadeiramente já existiu – eles passavam com suas máquinas, cantando suas canções e exibindo seus cocares. No caminho por onde eles desfilavam com seu jeito de ser, havia grupos irradiantes do sexo oposto. Elas se colocavam de cada lado do estreito trecho por onde passavam as máquinas, e acenavam com suas tangas curtas e suas peles cheias de sol. Como fêmeas no cio, elas exalavam de sua pele um odor espectral-entranhal que seduzia os machos de chapéus e maquinários. Quando mais cheiros exalados e sinais feitos com as tangas, mais o volume do canto, sinal da representação de um povo, ficava mais alto.

No centro universitário, que do universo longe ficava de suas proporções, ouviam-se os gritos de cá e de lá, as luzes fortes se misturavam com o cheio sedutor das barracas de lanches e dos bares. Era sexta-feira, dia em que os demônios habitavam as ruas, e que todos cantavam para o acasalamento temporário. As fêmeas distribuíam papéis com ilustrações àqueles que passavam por elas. Estendiam à mão aos chapéus das máquinas que paravam diante delas. O som alucinante era lancinante. E todos vivenciavam a vida em comunidade, tribo de valores.

Com o circo montado à minha frente, eu me questionava cem vezes por segundo como fora parar naquele lugar. Em uma mesa ao ar livre, no canto de um estabelecimento, eu tentava engolir algo para somar à minha existência alguma coisa que valesse à pena, quem sabe a comida. E a ânsia da insuportabilidade nauseava-me. Desejava furtivamente escapar àquela dança de anjos decaídos. Como macho da espécie, sentia-me atraído pelas fêmeas de sol como aqueles que guiavam sentimentos de motor. Entretanto, ao não pertencer àquela tribo hostil, que celebrava, dançava e sentia coisas inerentes à minha tribo, via minha essência ameaçada.

Contudo, ao quase decidir pela partida, vejo um ser aproximar-se. Veio devagar, subindo o caminho pedregulhoso de escárnios. Costurava a multidão com passos tortos e doloridos, procurando a cada canto algo que lhe satisfizesse. Quando se aproximou mais, pude ver seus olhos nítidos de fome, e sua boca machucada de dor. Trazia uma das patas com dificuldade, ser cocho é tão intolerável como ser um animal sem fala. Ele passava em meio aos grupos de dois ou três, cheirava seus pés, procurava furtivamente seus olhares. Toda vez que se aproximava e fazia tudo isso, ganhava como carinho um pontapé em seu dorso já surrado pelos pontapés de sua frágil existência.

Do lado da rua onde eu o avistei – que era o mesmo de onde eu tudo via – ele passava entre todos, pedindo um olhar, algo para aliviar sua dor de fome. Ninguém se apercebeu de sua presença. E aqueles poucos que notavam seu existir, desviavam olhares para não se padecer com sua dor. Acreditavam, provavelmente, que a eles não competia alimentar um ser de outra tribo. Excluíam-no pelo simples fato dele levar apoiadas ao chão suas quatro patas, enquanto eles, seres racionais jogavam duas delas ao ar. E o cão continuava sua peregrinação a passar por entre a louca multidão que cantava seus cânticos elevados aos seus próprios céus. Se ao menos sobrasse ao surrado cão uma ave pequena qualquer que ele pudesse abocanhar. Se houvesse um lixo por perto com restos com que ele se alimentasse. Mas não havia, a gula sempre foi maior que a fome.

Com cestos nas costas e peles de madeira, eis que sobe um grupo de pessoas, com pequenos e grandes exemplares de sua espécie. Exibiam suas insígnias, andavam cantando seus cantos e vendiam seus apetrechos para se alimentarem. Quando eles passavam, aqueles que empunham chapeis e distribuíam folhetos desviavam como se se desviasse da malária mais mortal já existente. Os índios viviam suas dores com sorrisos nos rostos e via-se uma satisfação em ser o que é.

Um dos meninos avistou o cão no mesmo momento em que foi visto por ele. O olhar não durou mais que dois segundos, tempo suficiente para lerem-se e saberem o que cada um precisava. E para que mais? Às vezes a vida nos dá cinqüenta anos para aprendermos tudo em alguns segundos, é um dos mistérios que nos cercam. O menino comia um pedaço de pão e o cão tinha os olhos marejados. O menino deu-lhe o pão, o cão deu-lhe o carinho, unindo duas tribos distintas na forma e no pensamento, mas irmãs nos sentidos e nas dores. Sem serem percebidos pela multidão que cantava suas festas, cão e o menino, acompanhados de sua família, subiram juntos seu novo trajeto. O cão já sorria esquecendo de sua dificuldade existencial. O menino encontrara em um cocho que não falava sua língua um próximo a quem poderia dirigir afagos; o cão encontrou alguém que lhe enxergava, alguém que era igual àqueles que o desprezavam, mas que dentro de si, era igual a ele.

A imagem, ambos de costas a correrem pela calçada, nitidamente me deixou uma frase que me valeu os sofrimentos da noite: alguns seres humanos são mais irmãos dos animais do que irmãos de sua própria raça. E essa união desconstrói as tribos imaginárias que todos se enquadravam, enquanto a tribo do chapéu continuava com seus ritos, com suas oferendas aos seus deuses. Erguiam as botas e os chapéus, e sentiam verdadeiramente possuir a maior virtude de todas, divertindo-se porque a finitude bate à porta.