AF 447

Só Deus sabe o quanto eu a amava. Só Deus sabe o tanto que eu sofri. Ela era a personificação da bondade, minha princesinha. Ela era um sonho distante que eu sempre tentei alcançar; mas meus pés nunca saíram do chão e eu não pude voar para chegar lá.

Aconteceu mais ou menos às duas e meia da tarde. Quando eu cheguei ao aeroporto para embarcar no próximo vôo com destino a Paris. Eu morava no Brasil, minha namorada Bia estava terminando os estudos na França. A temporada que ela passou aqui na América do Sul foi turbulenta para nós dois. A começar por uma crise de ciúmes dela, que estava desconfiada de mim. Como se não bastasse, ainda tinha a pressão do pai da Beatriz, ele nunca gostou muito de mim. Ele queria que a filha dele se casasse com um empresário rico lá pela Europa mesmo e não com um vagabundo qualquer aqui do Brasil. Nós discutimos várias vezes e eu sugeri terminar o namoro para protegê-la. Mas ela também estava apaixonada demais por mim. E eu não era forte o bastante para deixá-la partir sozinha, não depois da tragédia que tinha acontecido.

O aeroporto estava cheio. Várias pessoas já estavam embarcando, quando eu e ela subimos a rampa para a aeronave. Nos sentamos juntos, mas essa proximidade não existia por dentro, sequer nos olhávamos durante a decolagem. Eu iria acompanhá-la até a França e voltaria no dia seguinte para o Brasil. Mas tudo o que eu queria era tê-la de volta, porque aquele clima entre nós dois era gelado. Passei a mão por trás do ombro dela e a abracei. Ela imediatamente deitou a cabeça no meu colo. Não nos olhamos. Comecei a fazer cafuné naqueles cabelos de anjo dela. Ela tinha o perfume da mais pura rosa molhada pelo orvalho. Estava com os olhos fechados.

O avião decolou e agora estávamos sobrevoando o Atlântico. Senti um frio na barriga, mas que nada tinha a ver com a decolagem. Na verdade, vinha de dentro para fora. Uma sensação de abandono. De deixar a vida para trás. Me consumiu por inteiro.

Dei um beijo na cabeça dela, e ela despertou me olhando com aqueles olhos melancólicos. Tinha um ar pesado, que expressava um luto eterno, uma perda em vida.

- Te amo muito... – disse, sorrindo, enquanto acariciava o rosto dela.

Ela me olhava com um pequeno sorriso, enjaulado numa grade de depressão.

Eu sei que ela sofria, porque eu também sofria o mesmo e nada podia fazer para reverter aquilo tudo. Mas eu podia confortá-la com todo o amor que me restava. Com o pouco que a vida me deixou. Não era grande o suficiente, mas era puro e sincero.

Senti a temperatura cair e me encolhi no casaco. O avião deveria estar passando por uma corrente de ar, porque o clima mudou bruscamente e tudo ficou tão frio como o meu coração.

- Atenção, passageiros, estamos passando por uma turbulência, por favor apertem os cintos. – anunciou a voz nas caixas de som.

Bia e eu apertamos o cinto, ela me deu a mão. Estava tremendo. Eu também estava com medo, mas fiz o possível para tentar confortá-la, segurando sua mão.

Naquele instante, eu lembrei de todas nossas viagens, de quando nos conhecemos, dos nossos planos de casamento, dos nossos sonhos e da tragédia que nos derrubou. Engraçado, pois dizem que, quando você morre, a sua vida toda passa por sua cabeça e foi mais ou menos isso o que aconteceu.

Primeiro veio a sacudida. Eu fui jogado para frente com tanta brutalidade que o cinto se arrebentou, me sufocando. Apertei a mão dela. Todas as pessoas sacudiam freneticamente como se a aeronave fosse despencar.

Depois veio a maldita sirene. Aquele som foi um dos últimos que eu me lembro de ter ouvido na minha vida. E em seguida vieram os gritos.

Dos meus cinco sentidos, o tato era o único a funcionar. Porque eu senti a mão gelada de Bia, senti-a implorando pra que eu pudesse lhe salvar. Tudo estava girando na minha cabeça, o ar me empurrava para todos os lados, quando finalmente pude lhe abraçar. Houve um estalo, curco-circuitos, e a escuridão reinou. A histeria foi inevitável, o caos estava estabelecido e não havia meios de escapar. Foi a sensação mais terrível que eu já presenciei, pois entre os vultos e o vento, eu pude lembrar do rostinho dela a chorar. Pude lembrar dela sorrindo, tão pequena e frágil. Ela ia completar dois anos, nossa princesinha. E no meio da confusão, eu pude ouvir o soluço da minha amada Bia, pude sentir suas lágrimas caírem sobre mim, pude ouvir suas preces a Deus para encontrar nossa pequena novamente. Mas não foi Deus quem nos ouviu. Foi o Diabo que na escuridão de fumaça e fogo gargalhava, levando a vida de todos nós. E eu pude vê-la sangrando no dia do crime, pude ver Bia desabando sobre o corpinho ensangüentado no chão. Pude ver a mim próprio chorando em desespero. E pude ver muitos outros que pagavam pelo preço que cabia apenas a nós pagar. Nossas preces foram ouvidas, nossas almas foram levadas e nossa filha novamente iríamos encontrar. Mas e quanto as filhas dos outros que agora mergulhavam no oceano profundo adormecidas? E quanto a dor que dilaceraria centenas de corações? Centenas de vidas estavam prestes a acabar. Não só dos que partiam, mas também dos que ficariam, uma vida de dor é o que iria lhes restar.

Aonde estava Deus quando eu mais precisei dele?

Nem a morte, nem a vida, nada é tão terrível quanto estar vagando, sem a certeza de não sofrer nunca mais.

Pra onde irão nossas almas se não puderem descansar em paz?

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 09/06/2009
Código do texto: T1640952
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