Vidas Secas

O dia ainda nem começou a amanhecer, me viro na cama todo suado, embolado no velho lençol que me cobre e ajuda a livrar-me dos pernilongos. Coisa ruim esse danado inseto, me tira do sério com um zumbido infernal.

Noite difícil; calor insuportável, tórrido. Prenuncio de mais um dia sem chuva.

Aqui é assim, é o que temos, ou melhor, o que não temos: falta chuva, falta comida, falta dignidade e principalmente apoio, de quem poderia fazer alguma coisa para ajudar o nosso povo.

Lugar esquecido, uma beleza feia, sem cor, sem mascaras. Somos o que somos e não temos como mudar isso, não com as nossas próprias forças.

Quando os primeiros raios de sol invadem meu quarto, pelas trincas da velha janela de tábua, pendurada por alguns pregos tortos e toda comida por cupins, escuto passos que me despertam à atenção. Todos os dias nesse mesmo horário, é um tal de lep lep lep lep, num compasso quase que ritmado, como se fosse ensaiado, uma coreografia sem muita animação.

Espio pela fresta da janela, e lá vão elas de novo, um bando de mulheres com suas latas na cabeça. São crianças, senhoras, velhas. Todas em busca da tão sonhada água que o prefeito da cidade anda prometendo para a população. Há muitos dias dizem que virá um caminhão trazendo água boa para beber. Há vários dias as mulheres vão ao local marcado e até agora nada de chegar o tal caminhão pipa.

Por todos esses dias, tenho visto a decepção no rosto dessas mulheres, mas como é típico de nossa gente não desistir em meio a tantas dificuldades em que nós vivemos. E lá vão elas de novo, na esperança de que dessa vez chegue a tão esperada água.

Cada uma carrega o quanto pode as mais fortes: latas grandes de dezoito litros, as mais velhas e crianças, potes de um litro, cinco litros enfim o pouco que conseguirem ajuda muito.

No meio de tantas mulheres, uma me chamou mais a atenção, é a que carrega a maior lata. D. Benedita, muitos dizem que é a mais idosa de todas, no seu rosto a marca visível do tempo, companheiro cruel e impiedoso. Pele enrugada, sofrida, castigada por tantos anos de sofrimento. Boca sem dentes e sem dentadura, cabelos brancos. Mãe de dezesseis filhos e um monte de netos onde vivem em uma casinha de barro coberta em parte com telhas e o restante com pedaços de lona. Fogão somente de lenha que é aceso quando se tem alguma coisa para comer, geralmente só feijão e um pouco de farinha que ela cozinha naquela panela velha toda amassada. Para repartir entre todos, apenas uma concha para cada um e um pequeno punhado de farinha.

Muitos dizem que têm mais de oitenta anos, outros dizem que já passou dos noventa ou quase cem. Ao certo que ninguém sabe a sua idade.

Quase sempre é a primeira da fila, espera pacientemente, com toda a calma que os longos anos de sofrimento lhe deram.

Quando o caminhão da água não vem, todas ficam totalmente revoltadas, e sempre começa um principio de tumulto, muito bravas as mulheres batem nas latas e falam mal do prefeito, e sempre é a D. Benedita que acalma os ânimos dizendo a todas: calma minha gente, amanhã voltaremos, e se Deus quiser há de chegar a água a todos nós

E assim todas tomam o caminho de casa e D. Benedita percorre de volta os cincos quilômetros de volta até sua casa de mãos vazias, sob o sol forte e a poeira da estrada.

Pela minha janela vejo o retrato dessa gente simples, de muita garra e muita fé, gente que mesmo com tanta dificuldade, não abandona o lugar que nasceu e cresceu, gente que sonha apenas em ter uma vida que seja um pouco melhor, espera a chuva cair do céu para trazer um pouco mais de dignidade e que assim não dependam de esmolas para sobreviver.

No dia seguinte acordo de novo com os mesmos lep lep lep lep dos velhos chinelos que se arrastam pela terra batida da estrada, e na volta percebo a animação diferente na conversa das mulheres, quase sempre elas voltavam caladas, apenas as crianças conversavam. E dessa vez todas falavam em voz alta, e com isso resolvi sair para ver o tinha acontecido, e para a minha surpresa, todas estavam com as latas cheias de água, enfim pela primeira vez o caminhão pipa havia vindo e todas puderam encher suas lata, inclusive a D. Benedita equilibrando na cabeça a sua lata cheinha até a boca e com isso derramava um pouco de água conforme ela mudava os passos.

Enfim hoje é dia de festa, teremos água boa para beber, é como um refresco para o corpo e principalmente para nossa alma, vamos torcer para que o caminhão venha mais vezes, e que a vida possa ser um pouco melhor para nós todos, assim poderemos nos sentir um pouco mais da bondade de Deus que nos mandou esse verdadeiro presente do céu.

Pensei em consertar a minha velha janela, e colocar tabuas novas, mais ao mesmo tempo fico pensando que com a janela nova não verei o raios do sol e assim não verei a caminhada que as mulheres fazem toda manhã em busca de água, fiquei conhecendo a todas e as suas histórias de vida e luta e com certeza tudo isso me motiva mais ainda para que também possa sonhar com uma vida melhor para mim e minha família, afinal minha mãe também é uma delas, e confesso que eu não dava muita importância para isso, e nem imaginava a distancia que elas percorrem e o quanto é pesado uma lata cheia de água.

O mais pesado não é carregar as latas cheias de água, o mais pesado é ver uma criança com fome, com sede e não se ter o que dar pra ela, e ver a mão calejada do agricultor que com muito esforço planta a sua rocinha, e a falta de chuva acaba com ela e ele nada pode fazer. E triste ver os animais morrerem de fome e sede sem a menor chance de sobreviverem.

È esperar pelo milagre que vem do céu, e que possa transformar as nossas vidas, e assim podermos tirar da terra o nosso sustento e de nossos filhos, para que a vida possa ser vivida de uma mais digna e mais humana.

Fim

Carlos Costa