Cavalgada infeliz, feliz saudade

“Livre filho da campina, eu ia bem satisfeito, camisa aberta no peito, pés descalços, braços nus...” (Meus oito anos - Casemiro de Abreu)

“Naquela tarde fagueira”, eu e o Cido, negrinho de vida humilde, meu amigo, resolvemos cavalgar...

O Cido, vivia com sua mãe, com o pai ou o avô, não me lembro bem, e moravam em uma casa de madeira, no meio de um pasto, na parte mais alta. Ficava na direção dos fundos do quintal e pomar de minha casa, e lá se chegava atravessando-se o pasto, propriedade da família Damiati, lá na Vila Porfírio.

Ficamos amigos porque, para cortar caminho até sua casa, passava pelo nosso quintal, além do que, freqüentávamos a mesma escola.

Falando desse local e cidade, o vento que ali soprava era uma coisa absurda. Uivava durante toda noite. Só para citar um fato, nessa época, cerca de 1964-65, houve um concurso para se atribuir um cognome ao município. Minha saudosa mãe, certa de ser a vencedora, atribuiu o cognome de “Cidade dos Ventos Uivantes”, numa alusão ao clássico de Emily Bronté (~1.850) e bastante apropriado a essa cidade, de árvores tortas, que apontam sempre o lado que o vento sopra. Depositou sua idéia esperançosa na urna. Afinal, havia um prêmio. Um prêmio, nas circunstâncias em que vivíamos era muito bem vindo. Meu pai tinha perdido todas as suas posses, e não foram poucas, e morávamos de aluguel, de forma muito modesta. Eu tinha uma formação e educação um pouco diferenciada, destarte minha condição econômica, herança do meu pai, que era extremamente culto, ensinava latim, grego, filosofia, português, política, economia. Eu era diferente, muito embora pobre e minha mãe esticava o salário do meu pai pelo mês todo, e vivíamos com grande parcimônia. Torcíamos mais por ela que pela crença de que sua idéia era imbatível, tanta era sua convicção. Minha mãe perdeu, e frustrada dizia que Bernardino de Campos não poderia ter outro nome. O cognome “Pérola do Planalto” foi o vencedor, mas ficou no ar um certo direcionamento, afinal, já nessa época, havia um certo nepotismo e privilégio às pessoas de maior tradição local, e o prêmio foi alegrar outra família. O fato é que em casa nunca achamos que esse cognome tinha ficado bem para a cidade. Semelhante pretensão quantos não tinham nessa época. Mas nada disso é importante. Não haveria de sermos nós os privilegiados. Certamente outros necessitados mereceriam muito mais, se esse fosse o critério. Parabenizamos até hoje a ganhadora. Mas isso é só para dimensionar minha existência nessa oportunidade. Hoje me orgulho de tudo isso. Tenho histórias para contar. E a grande herança recebida foi “nada” que não os conhecimentos mínimos necessários para conquistar tudo...

Mas vamos ao causo, verídico...

Eu tinha um grande respeito pela família do Cido, negros humildes, mas que guardavam algumas tradições, bem sei, que vinha lá dos lados da África. Batucava seu avô um tambor, rústico feito de pele de cabrito, o Cido também batucava, e entoavam cantos tribais afros, invocavam ancestrais e transformava o quintal em um misto de terreiro de forte espiritualidade e saudades, de algo distante no tempo... batuque dos negros bantos.

Os ventos, que passavam primeiro no casebre deles, levava aquele som primitivo até minha casa, passando pelo pasto. Eu tinha um misto de medo e respeito daquilo.

Demorava pegar no sono. Mas esse menino era de um enorme coração, amigo, necessitado, não pedia, a gente dividia também nossa miséria. Estudava comigo no Grupo Abreu Sodré.

O que se passou é que, todo menino lá era livre. Fazíamos aquilo que no momento “dava na veneta”, foi quando vimos uma égua pastando, resolvemos cavalgar um pouco.

Para nós não era necessário qualquer tipo de arreio, sela ou proteção. Montávamos “em pelo” e galopávamos o que a montaria agüentava. Bastava um cipó no focinho e tínhamos já a direção e domínio da montaria. O resto era vento no rosto e velocidade.

Eu na frente e o Cido na garupa. As crinas e o rabo ficavam em riste, num rápido galope. Que bom que era aquilo!!!

Mas, nem sempre essas coisas terminavam bem. Aquele dia, a égua, descontrolada, disparou o que podia pela trilha pasto afora, em direção à parte mais baixa do terreno, em uma ascendente que levava até uma nascente e um regato cristalino. Passou muito rápido debaixo de uma galhada que pendia, rente ao mato e em paralelo a uma cerca de arames farpados.

Erguíamos as pernas para fugir do arame, eu agarrava a crina do animal com toda força, equilibrávamos e acompanhávamos o movimento do galope ligeiro, feito um apache, dos filmes de índios, mas... de repente....Vupt. Foi como uma vassourada. Parecia filme de comédia, quando na corrida de perseguição, mocinho e bandido, sempre aparece um galho que derruba o cavaleiro, normalmente o mau. Mas, éramos bonzinhos, porque aquilo conosco. Simplesmente fomos inevitavelmente varridos de cima do animal, que continuou sua corrida invernada afora, já mais aliviada de peso.

Eu caí meio em cima do Cido e rolei na grama devido à força da inércia, e ria o quanto podia. Achei muitíssimo divertido o ocorrido.

Mas o Cido, coitado, caído, permaneceu quase sem se mexer, gemia muito e chorava segurando o braço.

Percebi então que era sério. Assustei-me. Ajudei-o a se levantar, e com muito sacrifício, fomos para a casa dele. Bom, depois dessas “artes”, não sei bem o que aconteceu com ele, porque, mal explicamos o ocorrido, eu dei no pé de lá e fui para minha casa. Mal dormi naquela noite. Só pensava no que tinha ocorrido, como eles fariam naquele meio de tanta necessidade, enfim, fiquei com uma enorme dor de consciência.

No dia seguinte, aparece o Cido, braço todo engessado. Já não podia ajudar sua pobre mãe.

Contou-me então que havia fraturado o braço em três lugares, e eu fiquei realmente muito triste e penalizado por isso.

Mas, o que se havia de se fazer. A vida tem que continuar com sua comédia...

Acho que sua mãe, zelosamente, deve tê-lo orientado, para que não andasse mais em má companhia... Depois desse fato, tivemos poucos encontros dignos de nota. Ele também estava se tornando um negro forte, cresceu e já tinha que trabalhar para sustentar a família.

Isso me lembra um pouco a composição “Morro Velho” do Milton Nascimento, que brilhantemente retrata o relacionamento social na fazenda e a diferença existente entre o branco e o negro, que até hoje é como uma mácula triste na história deste país.

Depois de muito tempo, voltando à cidade, encontrei o Cido, agora trabalhando arduamente na coleta de lixo, como funcionário público da prefeitura local.

Depois disso, nunca mais vi esse amigo e tenho muita saudade dele, e das minhas traquinagens por aí...

Se alguém vê-lo, diga-lhe que esses fatos me ajudaram a crescer feliz, a respeitar as pessoas, a não ter qualquer espécie de preconceito seja qual for, quando muito racial. Digam-lhe que ele é parte das minhas mais ricas lembranças, de um período, hoje vejo tão curto, mas rico de proezas e fatos, que insistem em aparecer nos meus sonhos.

Aprendi com ele também a respeitar culturas. Isso só me ajudou na minha luta, pois sempre me dei muito bem em qualquer situação, com qualquer povo, raça, credo, qualquer língua ou tendência política. Já rodei uma boa parte desse mundão. Minha meninice, mercê da sorte e infortúnios, me fez ter vontade de continuar a desafiar o tempo e o vento, a cavalgar nos mais indóceis corcéis, a desviar de obstáculos ou vencê-los com sabedoria ou fortuna, rumo à construção de uma sociedade justa. Construí uma família, tive filhos, educo-os e preparo-os, para a continuidade do árduo caminho da construção de um mundo melhor e digno de todos.

Fico muito entristecido pelo fato de que o país continua a criar diferenças sociais, e as pessoas, cegamente ainda alimentam a cadeia de diferenças, como se essa terra abençoada não fosse, de forma impiedosa e inevitável, se alimentar igualmente da carne de todos que por aqui passam um dia...

Assim, nessa dicotomia, aqui ficam os feitos e não as lembranças dos feitores, que o tempo, pacientemente se incumbe de apagar da memória das pessoas, dos parentes, das lápides, dos mausoléus e pirâmides, que lentamente se vão desintegrando, num lento processo... Paciência do Criador, que continua criando, evoluindo, enquanto rezamos, achando que tudo está pronto, e culpamos a destruição sem noção de que Ele ainda está construindo sobre o destruído, adaptando, selecionado aquilo que será digno de usufruir disso tudo, num tempo futuro e dimensão que foge à nossa imaginação... quanta pequeneza...

Eu, bem ... eu, nesse futuro, estarei feliz no infinito, sorrindo na paz de quem contribuiu para a grandeza do universo e mero instrumento de Deus nessa medíocre passagem!!!!

Eia, cavalinho do tempo, eia... ventos, areias e poeiras cósmicas a acoitar meu rosto... meu semblante e aura iluminando as galáxias qual incomensurável cometa na maior órbita do universo, de infinita dimensão impossível de imaginar, desafiador das mais complexas teorias e desconhecidas dimensões, passando para o outro lado dos negros buracos e das enormes forças gravitacionais que a tudo absorve, compreendendo tudo o mais existente entre o céu e a terra, que a vã filosofia jamais soube me explicar... minha interminável cavalgada rumo a Infinita Bondade e Grandiosidade do Onipotente Deus, Todo Poderoso, Criador do Céu e desse incompreendido Universo...

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 03/06/2006
Reeditado em 18/01/2013
Código do texto: T168840
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