Hora de Acordar!

- TRIIIIIIIMM!

Levantei lentamente as pálpebras e encarei o despertador. Estranhei o ruído estridente liberto da minúscula caixinha de som, acoplada ao dispositivo, e pensei alto:

- Mas esse não é o toque do meu alarme. Deve ser a pilha...

Rastejei meu corpo em direção ao banheiro, arrastando as solas dos pés no chão gelado. Não encontrei meu chinelo quentinho mas não perderia tempo procurando. O reflexo do espelho mostrava um rosto abatido e carente de cuidados. Estranho. Procurei meus cremes importados, ainda com os olhos foscos, e só encontrei um tubo de pasta de dentes espremido com maestria para que nenhuma molécula fosse desperdiçada.

Prometi deixar um recado para minha empregada para que repusesse os cosméticos que não estavam ali.

Liguei o chuveiro e aguardei a água quente que embaçaria o ambiente. Adorava a imagem distorcida que o vapor provocava. Surpreendi-me quando senti a água gelada, em jatos escassos e desordenada, congelar minhas costas. Desliguei a torneira, com velocidade espantosa, e prometi anotar, no mesmo recado, para que Maria chamasse alguém para verificar o sistema hidráulico da casa. O alto preço pago pelo imóvel, aliado a excelente localização, tornava a situação curiosa. Nunca tive problemas desse tipo antes. Vesti meu terno, que parecia mais amassado do que o normal e com qualidade duvidosa, e procurei a chave do meu Audi. Não lembrava onde a havia colocado, mas com o tempo conspirando contra a procura minuciosa, agarrei minha carteira e resolvi pegar um táxi.

- TÁXI!!!

Antes que fechasse a porta do automóvel, em péssimas condições, fui alertado:

- Escuta moço, como o destino é longe eu tenho que cobrar antecipado.

- Sem problemas! Quanto é?

- 80 reais.

- Só um instante que eu não tenho trocado... UÉ?? Cadê meu dinheiro??? Meus cartões???

- Já vi tudo! Pode sair do meu táxi!!! Sai fora!!!

- Espera, você não me conhece! Eu tenho dinheiro!

- Imagino que sim! E esse vale transporte que você tem na carteira??? Se enxerga homem! Rico não anda de busão! SAI DO MEU TÁXI!!!

Antes que libertasse qualquer sílaba em minha defesa fui arremessado na calçada, sob o olhar de reprovação da multidão que, apressada, desviava de meu corpo incrédulo ao chão. Caminhei em direção ao ponto de ônibus e torci para que aquela massa de pessoas fosse alguma manifestação grevista. Que nada! Todos ali esperavam as gigantes latas saculejantes que os levariam aos seus empregos miseráveis. Perguntei à senhora ao meu lado qual número deveria pegar e aguardei o momento de acenar.

Quando a placa do destino, colada à frente do ônibus, ficou nítida aos olhos, fui atropelado pelo bloco de gente que desfrutava momentos de espera ao meu lado segundos antes. Tentei traçar meu caminho mas a inércia esmagava meu corpo contra a porta entreaberta do veículo.

- Se segura hômi! Parece que nunca pegou busão!!!

- Mas o motorista não vai fechar a porta??

- Tu tá de sacanagem? Agarra na porta porque nóis vamo pendurado!

Engoli a próxima pergunta quando o motorista, dócil como um operador de guindaste, afundou o acelerador, desprezando pelo retrovisor o desequilíbrio revoltado dos passageiros. Quando pensava em manifestar minha indignação sentia o próximo solavanco do freio e sonhava somente em preservar minha vida.

Finalmente reconheci o ponto de ônibus em frente ao meu trabalho e apertei o botão. Realmente preocupado com meu horário, meu motorista algoz me deixou dois pontos depois. Reclamei em alto tom e quase fui prensado pelo acionamento prematuro, e proposital, da alavanca que fecha as portas. Desviei do esmago e caminhei, transpirando raiva, em direção à agência bancária da qual era Gerente de Finanças de Risco.

- Bom dia Carlos! Nem acredito que cheguei aqui inteiro!

- Coloca qualquer utensílio magnético na caixinha! – proferia o segurança com desprezo.

- Você está falando sério???

- Tô com cara de quem tá brincando?

Determinado a entender aquela estória coloquei a chave de casa na caixinha. Colocaria meu celular mas parecia que eu o havia perdido também.

- Posso entrar agora? Pra T-R-A-B-A-L-H-A-R?

- Levanta a camisa porque eu percebi um certo volume na altura da cintura.

- Você está louco Carlos??? Não respeita nem chefe mais???

- Central na escuta? Solicitando apoio na entrada do banco. Suspeito violento e possivelmente armado.

- O QUÊ???

Pronto a invadir meu local de trabalho senti os braços de três homens que, por ironia do destino também trabalhavam pra mim, me escorraçarem para fora como um bicho.

Juntei algumas moedas e decidi retornar pra casa. A quantia arrecadada nos bolsos determinava o transporte a ser utilizado na aventura de volta. Lá fui eu para o ponto de ônibus. Multidão de pessoas, motorista enfezado, curvas nauseantes, freadas nada acidentais, calor insuportável. Não faltava nenhum ingrediente que pudesse piorar aquele dia.

- ASSALTO!!! CALA A BOCA TODO MUNDO PORRA!

Estava enganado.

- Você aí com essa cara de idiota!!! Passa a grana porra!

Havia chegado a minha vez de ser abordado pelo jovem de comportamento tão distinto.

- Não tenho nada... – sussurrei já cansado de tentar entender o universo ao meu redor.

- Tá maluco mané??? Quer tomar pipoco???

- Quer saber? Enfia logo uma bala na minha cara seu vagabundo inútil!

- O quê?

- Quem sabe assim você não aumenta as estatísticas desse país doente que defende lixos como você e sai como herói?

- Mas...

- Aliás, atira em todo mundo aqui dentro seu covarde de merda! – gritei, percebendo a cara de reprovação de todos que partilhavam aquele momento e que queriam, no fundo, que eu tomasse um tiro e calasse a boca.

- Tu é muito folgado mané!!! Vai aprender a num zuar bandido!

Senti o gelado do cano prensar minha testa e aguardei o pingo de coragem que faltava para que o adolescente terminasse o serviço. Acompanhei o deslize de seu dedo no gatilho e...

- BEEP-BEEP-BEEP-BEEP...

Levantei lentamente as pálpebras e encarei o despertador. Agora sim lembrava do som digital de meu despertador comprado na última viagem ao exterior. Caminhei em direção ao banheiro, desprezando meus chinelos quentinhos largados no canto do quarto, e visualizei minha pele macia no reflexo do banheiro. Desisti do banho quente. Vesti-me às pressas, agarrei a chave e desci para a garagem. Ao ver meu automóvel intacto, permaneci imóvel a sua imagem imponente, massacrado pelos faróis que furavam minha alma.

Senti-me envergonhado. Não pelas coisas que tinha, mas por ter sonhado o pesadelo diário dos que nada tem.

Juntei mais algumas moedas e corri para o ponto de ônibus.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 09/06/2006
Reeditado em 09/06/2006
Código do texto: T172249
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