Dona Moça

Dona Moça

Dona Moça era pessoa muito diferente das que eu conhecia; não tinha estudo, mas era insaciável devoradora de folhetins...Tipo de literatura entregue nas casas a cada semana; era feita uma assinatura, como existe hoje o círculo do livro, depois, só aguardar com impaciência os folhetins. Os títulos eram muito curiosos: a Princesa Infeliz, Vida Cigana, Ré Misteriosa e outros que faziam a alegria das pessoas humildes; naquela época (!) as donas de casa viviam em regime de escravidão, com menores recursos e sem rádio ou televisão e, no caso de Dona Moça, sem luz ou água encanada. Às donas de casa, era reservado o direito sagrado de trabalhar de manhã à noite, lavando, passando roupa a ferro de carvão, cozinhando em fogão de lenha, correndo atrás dos percevejos e pulgas, numa fase sem inseticidas ou dedetizações, cuidar das crianças e dedicar atenção especial aos maridos. Dona Moça morava numa casa em Ricardo de Albuquerque, na beira da linha e da vala de esgoto a céu aberto, chão de cimento, sem água ou luz, valendo-se de um chafariz, que ficava a uns trezentos metros e de uso comum, inclusive com direito a fila. Usava lamparina de azeite; um copo com 3/4 de água o restante de azeite e os pavios flutuantes, que davam uma luz mortiça e triste; não lhe era possível ler, somente sendo possível à luz de velas. A casa tinha um grande cômodo que funcionava como sala e quarto; nos fundos tinha um outro quarto com saída independente, todos com um pé direito bem alto. As janelas davam para a linha de trem, as pessoas dormiam embaladas pelos apitos da maria-fumaça, como se chamavam os trens antigos com caldeiras de coque. O quintal era grande e mal cuidado e havia do capim ao pé de guando, para não falar de umas laranjas lima eternamente azedas. A diferença de Dona Moça, em comparação com outras pessoas, era a capacidade de entender as pessoas, especialmente, as crianças. Com ela, crianças podiam beber vinho caneca, fumar cigarros aspásia e fazer qualquer outro tipo de sacanagem sem qualquer reprimenda. Imaginem, que um deles afogou um pinto, no sentido mais exato do termo, achando que ele poderia respirar debaixo d'água. Não estava muito distante, pois, num futuro de elucubrações filosóficas, conheceu as teorias de Anaximandro! Dona Moça, nada! Como se afogar um pinto fosse um mero ato de rotina para uma criança, assim como, brincar na linha do trem ou pescar na vala de esgoto, ou brincar na chuva. Dona Moça gostava de lhes contar histórias de terror, onde predominavam as mulas-sem-cabeça. Era pessoa popular entre os vizinhos, eles também, sem os favores da sorte, constituindo uma comunidade como um gueto. Uma de suas alegrias era a fezinha no bicho, conforme dizia; todos os dias jogava e tomava aquele compromisso como de grande seriedade; geralmente ganhava no grupo. Acredito que apesar de todas aquelas dificuldades, ela conseguia ser uma mulher feliz. Essas coisas, esse tipo de vida não dá para imaginar, tem de testemunhar para se ter idéia. Não adianta querer dizer que tem pé na cozinha. Seria preciso que essa cozinha não tivesse água, nem luz e nem esgoto. O resto é delírio teórico!