O universo do Sr. Krause

O UNIVERSO DO SR. KRAUSE

Julho de 2009

Newton Schner Jr.

Baixo, se comparado com minha altura, era ele. Chamou-me a atenção vê-lo parado, em frente ao portão, com um boné que apesar de cobrir parte de sua testa, não o protegia do sol que fazia naquela tarde.

Eu o olhava com curiosidade e admiração. Como que tomado por um impulso – do qual resultou-me um tesouro em forma de pessoa –, fui ao encontro seu. “Não está muito calor para ficar parado aí?” disse, esticando-lhe a mão. “Como o senhor se chama?”. Sorrindo, entoara uma voz que, apesar de sua idade, ainda dava indícios de seu orgulho, “Arthur Krause... Origem germânica!”, “É mesmo? Poxa, que bom! Também sou descendente de alemães... Me chamo Schner!”, “Schner? Do Doutor?”, “Isso, sou filho dele!”, “Eu me tratei por muito tempo com o seu pai. Nós tocávamos juntos também – eu com meu acordeão, ele com seu violino. Faz quanto tempo que ele faleceu?”, “Ah, menos de um ano”, “E você está morando sozinho naquele casarão?”, “Sim”, “Não tem namorada?”, “Ah, não... Está difícil achar uma alemã jovem para se namorar nos dias de hoje!”. Rimos juntos.

De cabelos brancos e um rosto marcado pelo trabalho, Arthur possuía olhos azuis e uma barba que, ao que tudo indicava, não era feita há quatro, cinco dias. Por conta da idade, de suas dificuldades para respirar, sua voz – sem que eu pareça cruel – era um pouco engraçada.

Ainda à frente de seu portão, unidos pelo mesmo riso, prossegui: “E o senhor fala alemão?”, “Ah, claro! Falo tudo, e melhor que o português, porque fui alfabetizado primeiro em alemão. Ainda hoje leio a bíblia neste idioma!”, “Gut! So vielleicht wir könen auf deutsch sprechen!”, “Ach, sprichst du deutsch?”, “Leider mein deutsch ist nicht so gut... Du weisst, ich bin sehr schüchtern und auch ich habe kein Freund zu trainieren. Aber...Kann ich dir eine dinge Fragen? Wie alt bist du?”, “Ich bin zweiundachtzig”, “Zweiundachtzig!”. Neste instante aparecera sua esposa, dona de um cabelo louro e ondulado, com sardas e uma dentadura muito charmosa. “Veja, mãe... Ele é filho do Dr. Schner!”, “É mesmo?”, “Sim, e fala alemão!”.

Despedimo-nos com cordialidade – não por minha vontade, mas como eu estava à espera de duas outras pessoas que naquele instante me chamavam, tive de deixá-lo. “Apareça sempre! Estou em casa praticamente todos os dias. Só ontem que tive de sair, porque a mulher queria comprar algo no mercado. Também saí nesta semana para consultar, porque estou com uma ferida neste osso próximo do pé... Eu não sei o nome!”, apontando para a ferida.

Estudava à tarde. Resolvi fazer-lhe uma visita durante o almoço. Tudo estava fechado; de dentro da casa não provinha um só barulho. A garagem também estava trancada. Persisti batendo palmas e deixando que enquanto minhas mãos fizessem seu trabalho sem que necessitassem de minha supervisão, passeei meus olhos sobre sua casa: de portão e muros baixos, faziam-me pensar em uma época não muito distante, mas na qual eu infelizmente não havia nascido – tempos em que não se temiam saques, seqüestros, perturbações. A grama bem aparada, ocupando boa parte da calçada de coloração mais escura. Calma era sua rua. Moramos a doze quadras de distância.

E enquanto contemplava os detalhes do ambiente que o cercava, saíra ele da garagem: “Quem é?”. Apertara os olhos e aproximando-se com lentidão, dera-se por conta. “Ah, é você, amigo! Pode entrar... Entre, entre! Eu estava mexendo no carro!”. E tocando sua mão sobre o ombro meu, levou-me para dentro da garagem de sua casa onde estava estacionado seu Corcel, de cor amarela e aparência impecável.

Meu velho novo amigo, que portava desta vez outro boné, não se constrangeu ou estacionou suas atividades com minha visita inesperada. Adentrou pela porta do motorista, abriu a do passageiro por dentro e me chamou. “Venha ver como está!”. Naquele instante, pude perceber que não estava diante de uma pessoa qualquer, mas de um grande gênio – que sorte fora, pois, tê-lo conhecido! Com cuidado, mostrava-me detalhe por detalhe que ele fora capaz de alterar no painel de seu carro que ao que me assegurava, estava muito bem conservado. O que mais chamou minha atenção – a atenção de um leigo por completo em relação a carros – foi o fato de perceber que não havia chave de ignição, mas um botão próximo de onde os rádios costumam estar. “Certa vez tentava ligar o carro e por ter forçado a partida, a chave quebrou... Desde então utilizo este botão para ligá-lo, que é bem prático. Quer ver como funciona?”. Ligara o motor do carro e enquanto este suavemente tomava conta daquela garagem fechada, o velho Krause contava-me mais um pouco sobre sua vida automobilística. “Este carro está ótimo! Já quiseram comprá-lo, mas eu não quis me desfazer dele... Sabe como é, hoje os carros novos são caros e não valem nada. Eu, quando preciso trocar qualquer peça, encontro facilmente a solução. E eu o uso sem problema algum. Neste ano renovei minha carteira de motorista, fiz todos os testes e ainda me deram mais dois anos de uso! Apenas para viajar é que eu uso o ônibus, até porque não pago”, “Sim, claro”, “Aliás, daqui duas semanas eu vou para Jaraguá do Sul visitar minha neta junto com a mulher” “Lá existem muitos alemães”, relembrei – o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, é predominantemente alemão. “Sim! Eu estive em Blumenau, que é perto de lá. Cantamos e contamos piadas com os alemães. Aquele sim é um pessoal alegre!”.

Levou-me para dentro de sua casa. O primeiro cômodo era a cozinha, onde estava sua mulher que lavava as últimas peças de louça do almoço. Tendo me visto, enxugou suas mãos para me cumprimentar, dizendo-me que se soubesse de minha visita com antecedência, teria preparado um almoço. Havia pela casa vários retratos – muito provavelmente de filhos e netos – e imagens religiosas. Pelo que percebia, eram católicos. Os móveis eram em boa parte antigos, bem conservados – aqueles cuja madeira brilhosa pareciam ter sido lustrados especialmente para minha visita. Admirável era a quietude, a organização e o aconchego daquela casa.

O Sr. Krause logo me levou à sala – primeiro cômodo quando se entra pela frente da casa. Sentei-me ao sofá e ele, tal qual uma criança que deseja mostrar o que faz de melhor, perguntou-me se gostaria de vê-lo tocar. “É claro!”. E então eu o vi caminhar em passos largos em direção ao seu quarto. Com cuidado trouxe uma mala, e com mais cuidado ainda retirou sua Tramontini que continha a inscrição de seu nome na parte superior.

Subitamente empunhara-a com tamanha habilidade, começando a tocar. Era impressionante. Era, na verdade, um verdadeiro espetáculo vê-lo tocar, mover com tanta agilidade os dedos que pareciam automaticamente encontrar cada uma daquelas notas complicadíssimas. Tive o privilégio de vê-lo não só tocar, como cantar músicas folclóricas alemãs. “Eu”, dizia ele, “ganhava a vida tocando em bailes, quando era mais jovem”. Canções alegres, puras, vivas. Teria eu imaginado que aquele mesmo velhinho, parado a contemplar o nada em frente à sua casa, se revelaria diante de mim como exímio mecânico e músico? E quem imaginaria que na medida em que eu o conhecesse, teria cada vez mais motivos para admirá-lo?

Prosseguiu ele: “Eu toco tudo por partitura, porque fiz um curso de dois anos. Também toco bandolim!”, “Bandolim? Há um bandolim na minha casa, mas ele está desafinado”, “Eu sei afinar! Traga-me e eu lhe ensino”, “Muito obrigado, Sr. Krause!”, “Vou cantar outra música para você, do homem que matou um cachorro”. E com dificuldade, cantava aquela canção que muito provavelmente aprendera com seus ancestrais – com dificuldades de respiração, não posso negar que me sufocava vê-lo esforçar-se daquele modo. Tinha vontade de dizê-lo “Se está sendo difícil cantar, apenas toque... Não é preciso que o Sr. se comprometa em cantar”, mas ele certamente seguiria adiante.

Despedimo-nos quando ouvi as primeiras trovoadas. Havia-se passado uma hora ou mais. Eu, por conta do motor do limpador de pára-brisas que não estava funcionando, precisava sair. “É cedo”, disse ele.

Ficou combinado então de que assim que eu tivesse oportunidade, tornaria a procurá-lo e comigo levaria o bandolim desafinado.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 24/08/2009
Reeditado em 09/09/2009
Código do texto: T1771609