A CASCA DA AROEIRA

"Seu" Virgílio, sertanejo calejado, vivia no sítio Várzea Alegre, no alto sertão nordestino. Conservador, adotara a postura do pai na condução dos negócios. Resistente a inovações, questionava: - "se tudo dera certo, para que mudar?

Sem os lampejos da mocidade, era jovial. Dedicara-se ao trabalho na propriedade herdada dos pais - sustentando dali toda a família. Orgulhava-se dos filhos formados por estarem bem encaminhados para o futuro. A vida no campo transcorria em perfeita harmonia, concedendo-lhe a energia vital de que necessitava.

De espírito agitado, Seu Virgílio conhecia cada palmo de chão, pelas cavalgadas diárias no cavalo "Relâmpago", seu fiel escudeiro. Caboclo forte como a aroeira, que também brotara daquele chão árido, fincara ali profundas raizes.

O pequeno rebanho bovino enchia-no de orgulho. Do leite produzia o queijo que repousava no "jirau" da cozinha até a comercialização. Com o algodão Mocó, variedade de fibras longas e maior longevidade, experimentara áureos tempos de bonança. O ouro branco do sertão - o boi do pobre, como chamava - fora a sua grande paixão até sucumbir ante a ação maléfica do bicudo. Os cultivares híbridos, apesar de rentáveis, não lhe seduziram.

A casa simples - frontal ao nascente - tinha piso de barro batido, fogão de lenha, paredes de pau a pique, iluminação à lamparina, geladeira a querosene e a velha mesa ladeada por pesados bancos de umburana. Na lateral do alpendre, um frondoso pé de cajarana abrigava o arado e o velho carro de boi utilizado no transporte de produtos, da casa até a estrada de terra, transitada pelo romântico "carro da feira". Uma "latada" de palha de carnauba - base das conversas - protegia os barris que abasteciam a casa com a água barrenta da cacimba encravada no leito seco do rio.

À noite a lua prateada banhava de claridade a campina, destacando o contorno sinuoso da serra. As estrelas, qual chuvas de pirilampos, iluminavam o céu num espetáculo divino. "Seu" Virgílio encantado improvisava belos poemas de exaltação à natureza.

Aos setenta anos, instigado pela família e contra à própria vontade, requereu aposentadoria em nome do suposto "merecido descanso", talvez sua pena de morte. Seria banido do seu "habitat" para o exílio na cidade.

Na partida, o velho carro de boi ecoou um gemido de lamento. Era a despedida. Chegando à estrada, "Seu" Virgílio claudicou, admirando a paisagem. Fechou a porteira e, tomado pela emoção, chorou feito criança. Cerrara definitivamente a porta de sua vida pregressa, sepultando a sua saga. Não podia retroceder. Dirigiu-se ao carro com passos lentos, chorou mais uma vez e partiu.

O carro deslizava veloz sob a densa cortina de poeira que emoldurava cenas do passado. "Seu" Virgílio, sucumbindo à pressão, fora mutilado. Retalhos coloridos de sua estória desfilavam desordenados na mente. Entre o sorriso e a lágrima, o sabor amargo da angústia forjara o triste adeus. Seus dedos nervosos, descompassados, desenhavam rotas imaginárias de fuga. Tarde demais! Prisioneiro das reflexões, enveredou pela rigidez fria da estrutura urbana que para si representava apenas um complexo de currais concretados, qual arquivos das incertezas de vidas desgastadas.

Durante a eufórica recepção dissimulara a amargura, mascarando a dor no peito flamejante. Na efêmera felicidade, sentira falta do cheiro de curral; do orvalho da campina; da noite enluarada; da canção do riacho; da cavalgada; da boa prosa após o trabalho e da liberdade que a natureza sempre lhe proporcionara. Quanta saudade!

Exposto à clausura, ao sabor da solidão e da ociosidade, tornou-se um projeto inacabado de vida. Perdera o senso de utilidade, definhando. O olhar vazio e sem brilho vagava a esmo, devastado pelo vento da saudade. Tornara-se um vegetal.

"Seu" Virgílio, não resistindo a tanto desalento, entregou-se ao sono eterno, ostentando, no leito da morte, um sorriso de serenidade. Decerto sonhara com o campo e morrera feliz por entre as flores da campina. Mas, que importa? Afinal, já morrera ao submeter o próprio destino à direção alheia, transmutando o curso da vida.

No descanso eterno "Seu Virgílio" vislumbra o tronco da velha aroeira tombado, como ele, mercê do corte radical de suas raízes. De ambos, restaram somente as cascas da existência. "Se tudo dera certo, para que mudar?" A felicidade não muda de lugar, nós nos afastamos dela - senão - nos forçam a fazê-lo e, assim, morremos em vida. Pobre Virgílio!

Heliodoro Morais
Enviado por Heliodoro Morais em 31/08/2009
Código do texto: T1784145