O JUIZ CARRANCUDO.

Inicio de primavera. O sol, apesar de ser ainda cedo, já raiava forte. Estava um pouco preocupado com a audiência pois era uma das primeiras da minha carreira. O crime, não tão grave, tratava-se de uma receptação culposa e, o réu, meu cliente, respondia ao processo em liberdade. Cheguei cedo ao fórum criminal daquela cidadezinha do interior. Era uma cidade bem pequena, contando apenas com uma vara criminal. O fórum ficava afastado do centro comercial da cidade, no alto de um morro e era rodeado por belas e grandes árvores que, quase escondiam o prédio, de tão altas copas. Conferi na pauta o horário da audiência, que estava já para começar. Pedia calma ao meu cliente que, mesmo assim, demonstrava certo temor pelo resultado do processo, mesmo alertado que não se tratava de um crime - pela ótica penal – grave e, de acordo com as provas apresentadas e os fatos narrados na denúncia, não evidenciavam um decreto condenatório. Ao contrário das grandes cidades, que mal os freqüentadores do fórum, mesmo que assíduos, se conhecem, naquela era diferente. Todos se conheciam e conversavam animadamente na ante sala, fazendo, por vezes, a serventuária pedir, gentilmente, que falassem mais baixo, pois poderiam atrapalhar os trabalhos realizados ali. Notei que o Juiz, já de meia idade, era carrancudo. Passou várias vezes pela ante sala sem, sequer, olhar para os lados, quanto mais cumprimentar alguém. O promotor - depois fiquei sabendo - era novo na cidade. Há poucos dias representava o Ministério Público naquela comarca. Pois bem. No horário determinado fomos chamados e, educadamente direcionados pela serventuária à sala de audiência. Antes de sentar-me, cumprimentei à todos os presentes, sendo os cumprimentos devolvidos, menos pelo Juiz carrancudo, que não fez questão sequer de olhar em minha direção. Meu cliente sentou-se no banco dos réus. O Juiz após perguntar-lhe o nome completo, leu a denúncia que contra ele pesava, anunciando o inicio do interrogatório. Após isso, o magistrado ficou parado, olhando através da janela da sala, que ficava na lateral da mesa, bem em frente às árvores, ao redor do prédio. A impressão que tinha era que pensava em tudo, menos na audiência ali realizada. Ficamos todos observando, um tanto quanto incomodados com a atitude do Juiz. Parecia que viajava em pensamentos por outros lugares. Descansou a cabeça no encosto da cadeira, cruzou os braços sobre o peito e começou a falar baixo, com voz melódica e estranhamente doce: Sanhaço não é !!! – Sabiá não pode ser !!! - Canarinho também não é !!! – Azulão ??!!!, não, não !!! .O que seria aquilo??!!!. Que diabos estava acontecendo, pensei ??!!. O promotor abaixou a cabeça, não se atrevendo a olhar para mim. Talvez, pensei, por tentar conter um sorriso maroto que lhe escapava dos lábios, sem querer. Após alguns segundos observei que o Juiz referia-se à um pássaro, que escondido entre a folhagem das árvores, soltava seu canto, numa interminável sinfonia. Um tanto quanto desconcertado e no afã de quebrar aquele “encantamento” do Juiz, disse: Excelência, o pássaro certamente veio nos prestar uma homenagem com seu lindo canto, anunciando a chegada da primavera ! O Juiz fez um movimento rápido, desencostando seu corpo da cadeira, assustando-me. Olhou para todos ao seu redor. Espalmou a mão direita sobre o peito. Revirou os olhos para cima, piscando rapidamente e, num profundo suspiro disse: Ai, que saudades de Itumbiara !, demonstrando certa nostalgia por sua terra natal, no interior de Goiás. Segurei-me para não cair numa incontrolável gargalhada, pensando com os meus botões que o Juiz apesar de carrancudo, era um “doce” de pessoa. A audiência terminou. A sentença foi, de certa forma, satisfatória para o meu cliente, mas jamais esqueci daquela frase, usando-a até hoje, quando me deparo com alguém, doce como o Juiz.....Ai que saudades de Itumbiara !!!

Sávio Henrique Pagliusi Lima
Enviado por Sávio Henrique Pagliusi Lima em 04/09/2009
Reeditado em 04/05/2011
Código do texto: T1791984
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.