O féretro pré-escolhido

“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.”

Salmos 23:4

O sol raiava iluminando os tetos das barracas espalhadas pela praia. Num gesto brusco levantou-se, alongou braços e pernas. Não iria à praia, hoje. Antes de ir ao banheiro, caminhou até a janela para confirmar o que vira: - o sol reluzia por toda a praia; fazia um dia lindo.

Foi à cozinha, preparou o desjejum com banana e mamão. Misturou creme de leite desnatado. Não quis café, preferiu suco de laranja e bolachas. Fartou-se e foi tomar uma ducha; precisa aproveitar aquele sol, aquele dia. Antes, porém, lembrou-se que tomar uma ducha ouvindo música seria prazer duplo. Vasculhou os CDs e optou por um disco antigo de Chico Buarque; presente de um amigo amante.

Postou-se em frente ao armário com os olhos em frenética dança; escolheria uma roupa apropriada. Camiseta, jeans e tênis. Tudo perfeito. Sentiu-se muito bem; confortável. Precisava andar; olhar vitrinas, pessoas; escarafunchar coisas que lhe interessassem. Tinha a manhã livre e a tarde também. Era sábado e o trabalho só lhe explorava de segunda a sexta – sorte a sua. Sequer precisaria preocupar-se com o almoço; pararia em um restaurante qualquer.

Rumou para o elevador. Enquanto o aguardava, pensamentos invadiam a sua cabeça, embora continuasse sentindo-se nas nuvens: - de bem consigo e com a vida. Mas eram pensamentos pretéritos; as aventuras amorosas – aquelas por amor propriamente dito e as por necessidade de todo ser vivo -, o relacionamento com a família, a cidadezinha em que fora criada, a morte prematura da mãe, o alcoolismo do pai... No conjunto era entediante aquela retrospecção; um saco, mas era real.

Impossível afastar a todos os pensamentos de uma só vez. Mesmo que quisesse não conseguiria. Afinal foram muitas ocorrências ao longo de apenas quarenta e dois anos. Momentos felizes somente o presente lhe proporcionava; pagou todo o apartamento, conquistou um bom trabalho. Sente pelos amantes considerações, tratando-os como necessários, não primordiais. A vida foi árdua e não houve quem lhe ajudasse; conquistou tudo com o esforço laboral. Não tivesse a iniciativa em deixar a cidadezinha pacata na qual nasceu certamente estaria gorda, feia e provavelmente casada e rodeada de filhos – não que não os quisesse; demandava estrutura –, e completamente estacada na vida. Foi à luta: mudou-se para a capital, estudou e conquistou com méritos um bom emprego.

Continuou caminhando. Parava em lojas, olhava as vitrinas. Já se aproximava do meio-dia, o sol a pino. Mas como estava numa roupa confortável, o incômodo não teria nenhum espaço. Resolveu parar numa lanchonete e comer algo. Comeu alguns salgados e ao final um sorvete de chocolate. Não sentia vontade de voltar para casa; não tinha nenhum compromisso. O atual namorado apareceria somente à noite, aliás, se não quisesse aparecer não lhe constrangeria; ocupar-se-ia com a internet, música...

Após visitar inúmeras lojas e lugares sentiu vontade de entrar numa funerária – coisa meio funesta. E o fez, sem hesitar. O atendente ao vê-la entrar dirigiu-se prontamente:

- Bom dia, senhora! Em que posso ser útil?

- Oi – respondeu ela com expressão de: - estou só dando uma olhadinha!

Mas o atendente solícito insistiu:

- Pai ou mãe?

- Hã – resmungou ela, encarando-o com um riso achatado no canto da boca.

- Desculpe senhora! Talvez eu não tenha me expressado com tanta clareza. Aqui é uma funerária e, claro, como toda funerária atende aos familiares de falecidos. Portanto...

Ela sorrindo o interrompeu:

- Não estou à procura de nenhum produto que somente os mortos usam. Estou satisfazendo a minha curiosidade; nunca estive num lugar deste antes.

O atendente meneou a cabeça demonstrando ter entendido – ou fingiu -, falando em seguida:

- Fique à vontade senhora e se precisar de algum esclarecimento, não se acanhe: estou logo à frente – apontando para uma mesa ao fundo da loja.

- Obrigada, senhor! Respondeu com um sorriso espontâneo evidenciando o desinteresse em adquirir qualquer produto daqueles.

Desatenciosa nunca observara com rigor – nos poucos velórios – como havia produtos de preços e requintes tão variados. Tinha para os pobretões e para os abastados e até para os intermediários. Encantou-se com um ataúde que fê-la chamar o atendente, que novamente se prontificou:

- Pois não, senhora!

- Apenas para continuar alimentando a minha curiosidade, quanto custa este aqui? Perguntou sorrindo, apontando um ataúde esmerado de requinte.

- Bem senhora! É muito caro. Normalmente vendemos um destes, a cada seis meses, no máximo. Somente determinadas famílias – bem abastadas - procuram por um produto destes. Mas diga-me: por que a senhora gostou?

- Ora, sei lá! - Sei que é um gosto meio atípico, extemporâneo, mas gostei...

Olhou mais alguns produtos, despediu-se e pôs-se novamente a caminhar. “Coisa estranha pensou: - aqueles produtos fúnebres fizeram-me esquecer daqueles pensamentos que outrora – apesar de não me incomodar – ocupavam todo meu tempo.” Não tinha fome para almoçar; fez outro lanche.

O sol timidamente começava a declinar. Olhou o relógio: 17:24 h. Outra ducha cairia muito bem. Andaria mais ou menos 40 minutos até seu o prédio. Parou, olhou tudo a sua volta e decidiu: iria para casa. Virou-se e seguiu em passos mais largos – “a volta é sempre mais rápida, pensou.”

Atravessou avenidas, ruas e, já bem próxima ao seu prédio teria que atravessar, ainda, a última avenida. Aproximou-se do canteiro e desapercebidamente foi logo entrando. De repente ouviu-se um barulho de pneus se arrastando no asfalto, proveniente de uma freada brusca e, em seguida um estouro. Um carro funerário parado e logo à frente ela estirada no asfalto, imóvel. Um médico que passava pelo local, correu e tentou reanimá-la – não tinha mais vida. Ainda com os joelhos dobradas, o médico vira para o senhor de preto que dirigia o carro funerário:

- Senhor! Não há mais o que fazer. Sinto muito!

O homem trêmulo e com a voz engasgada, balbucia:

- Ela esteve hoje em nossa loja olhando, analisando nossos produtos; transmitindo paz.

- Pelo semblante, senhor, ela teve um dia muito agradável, e creia: embora de forma dolorosa fez uma passagem em paz – falou o médico, levantando-se.

O homem olhou as poucas pessoas em volta e pediu a um senhor que o ajudasse. Abriu a tampa traseira do veiculo e retirou o ataúde que estava levando para um abastado. Abriu-o. Tirou do bolso um lenço e, visivelmente consternado, pôs-se, com profundo carinho, a limpar o sangue que cobria parte do rosto daquela que há poucas horas indagava preços, encantava-se com produtos, ria. Colocou-a naquele ataúde requintado, convergiu à esquerda e saiu em disparada, deixando um risco de sangue no asfalto.