Sangue e vinho

Augusto deslizou cuidadosamente a lâmina de barbear sobre a cicatriz no queixo. Seria mais fácil se fosse um rasgo de faca, daquelas marcas únicas e finas, que retilíneas rasgam a pele; mas não! A cicatriz era como o delta de um rio, cheia de bifurcações, irregular, recurva, irregular.

Por anos, escondeu-a sob a barba, longe da vista, longe das lembranças. Ter de fitá-la no espelho era reviver infinitamente a cena, aquele momento.

Tinha quinze ou dezesseis anos, namorava pela primeira vez; mas já era um homem, em termos sexuais. Ele e Juliana eram unha e carne, jamais se largavam, e, para o olhar dos outros, havia faíscas entre eles.

Mas o irmão não aceitava o namoro.

— Você é muito jovem — dizia ele, ou — ela ainda vai traí-lo.

Para o irmão, Juliana era apenas uma vagabunda qualquer, que desejava tirar proveito de Augusto e largá-lo na primeira oportunidade. Moravam apenas os dois num pequeno apartamento na capital, Augusto se preparando para o vestibular, o irmão no segundo ano de Medicina. Talvez o irmão mais velho se sentisse no papel de guardião de Augusto; talvez estivesse tentando protegê-lo.

No entanto, Augusto não dava ouvidos ao irmão; confiava cegamente na namorada.

Uma tarde, chegou mais cedo da escola e avistou Juliana e o irmão sentados num banco da praça em frente de onde moravam. Pareciam discutir, gesticulavam, falavam alto. Por fim, o irmão a agarrou pelo pulso e a trouxe de encontro a si. Beijou-a. Juliana resistiu um pouco, ou pelo menos encenou resistência, mas cedeu e devolveu o beijo; línguas se tocaram.

Augusto não soube como reagir. Correu para dentro de casa e se escondeu no banheiro. Enxugou as lágrimas e elaborou um plano.

Após o sexo, Augusto se virou para o lado e fingiu dormir. Meia hora se passou, então Juliana vestiu a calcinha, levantou-se e deixou o quarto.

Furtivamente, Augusto também se levantou e espiou: Juliana havia entrado no quarto do irmão. Ouviu então sussurros e, depois, gemidos baixinhos.

— Ele tinha razão — Augusto disse para si — ela um dia iria me trair.

Augusto ainda não havia dormido quando Juliana retornou para a cama, andando nas pontas dos pés, e se deitou a seu lado.

— Onde você estava? — ele perguntou, simulando ter despertado.

— Fazendo xixi — ela respondeu, voz trêmula, e com o cheiro do perfume e do suor do irmão impregnado no corpo.

Você levará o plano até o fim? Augusto se indagava. Mas agora não havia mais volta. O jantar estava pronto e tanto Juliana quanto o irmão já estavam à mesa aguardando o prato principal.

Augusto não cozinhava tão bem; mas gostava de preparar massas, lasanha bolonhesa era sua especialidade. Naquela noite, em particular, a receita era um pouco diferente.

Ele levou a travessa até a mesa e serviu os dois.

— Não vai comer, Augusto? — a namorada perguntou.

— Agora não. Podem ir comendo que já volto...

Augusto correu para a cozinha e aguardou. Cinco. Dez. Quinto minutos. Então ouviu gritos.

— Augusto! Augusto! — era o irmão.

Na sala, Juliana estrebuchava no chão, mãos na garganta, espumando.

— Acho que ela engasgou — o irmão disse.

— Nada disto — Augusto respondeu calmamente — É o veneno. O veneno...

Aterrorizado, e também enfurecido, o irmão fitou Augusto.

— Como pôde?

— Sou eu quem lhe pergunta: como pôde? Como vocês puderam? — Augusto berrou, com o ódio arrebentando no peito.

— É o amor... — o irmão sussurrou, também levando as mãos à garganta, quase engasgando — Não tive como evitar.

Certamente morreria, assim como Juliana que já não mais respirava, mas antes de cair da cadeira e perder a consciência, o irmão segurou a garrafa de vinho, fitou-a por alguns instantes e a arremessou contra Augusto.

A garrafa se estatelou no queixo dele, triturou a pele, donde jorrou sangue e vinho.

Naquela mesma noite, Augusto viajou para o interior do Mato Grosso e mudou de nome: passou a se chamar Mateus. Arranjou um emprego e se escondeu. A barba cresceu, casou-se e teve duas filhas.

Ontem, um policial bateu à sua porta, perguntando-lhe se ele já havia ouvido falar de um tal de Augusto, procurado pelo assassinato do irmão e da namorada, vários anos atrás.

— Não, nunca ouvi falar — mas ele havia tido a impressão, ou melhor, a certeza, de que não fora convincente. Se haviam chegado até ele neste fim-de-mundo, eles o encontrariam em qualquer outro lugar.

Então, elaborou um plano. Fez a barba e, para o jantar, havia preparado uma lasanha bolonhesa, uma receita especial.

À mesa, a mulher e as duas filhas. Desta vez, ele também comeria. Não podia evitar. Deixá-los arruinar sua vida? Jamais!

Fazia isto por amor.