Funerais e declarações de amor.

“Mexerica poncã, meia dúzia por um real!” Gritava pelos auto-falantes do carro, o vendedor, com uma música gospel ao fundo, numa rua próxima. Durma com um barulho desses. Ainda na modorra, procuro o controle da tevê. Tenho que fazer um sacrifício para o momento: esticar o braço. Está caído ao pé da cama. No canal onde ontem à noite eu via os comentaristas com cara de tacho, que antes criticavam ferrenhamente o “Ronaldo Gordo”, agora vocifera um pastor evangélico a vender um “cedê” e um “devedê” – “as nossas crianças estão sendo violentadas com livros e filmes de bruxaria” – dizia ele – “os comunistas diziam que se destruíssem as crianças, conquistariam a nação” – continuava na sua argumentação, para vender o produto. Pensei, “está bom, eu compro” e desliguei.

Faz um friozinho, na manhã que ainda não vi a cor. Não me levanto para este outro dia. Embrulhado no edredon vem-me, como um inventário, as reminiscências da sexta-feira. Já faz um dia que quando misturava o leite ao café, minha mãe conta que morreu o pai da Regina. Regina do Osvaldinho? Pergunto eu. Não a Regina... Era o pai do Geraldo, que é irmão da Regina, e o Geraldo é amigo meu. Padecia há algum tempo da próstata, mas morreu de ataque cardíaco. E fez a passagem logo após o seu habitual leite com café – do qual ele também era adepto.

Vamos lá dar as condolências à família, Dona Velina? ( às vezes chamo assim a minha mãe – falo pra ela que é para não dar muita intimidade!). A senhora conhecia o falecido? Ela diz que sim, e desde quando o Geraldo, a Regina e você eram ainda crianças, desde quando viemos pra Colatina. A Socorro que estava lá em casa resolveu que também iria.

A cada um da família enlutada, ao abraço, dizia que Deus lhes daria conforto. Era o que se podia dizer. Afinal, Deus, invenção ou não do homem, era de muita serventia nessas horas. Dediquei uma prosa maior ao Geraldo, falamos do falecimento da mulher do Seu Totó, amigo nosso do trabalho, ocorrido no dia anterior. Lembrei a ele que o Totó estava carregado de uma dor enorme, ele amava a mulher e ficava bem à vontade para alardear isso. Pôxa vida, quarenta anos e já tinha quatro netos, mas muito nova pra morrer. Mas não há idade pra morrer, não é mesmo? Ele concordou com o óbvio.

De lá Dona Velina e a Socorro foram para casa de uma conhecida. E eu quase direto pra casa, mudei o trajeto. Passei na estreita e simpática rua do Zezinho do Martelo, vi-o com seu bigode afiado. Acenei e ele me perguntou se estava tudo bem lá em casa, disse que sim e obrigado. Deu para ouvir a Nina, filha do Martelo, dizer à mãe “nossa que homão ‘bunito’ ele tá!” Então fiquei menos triste. Ouvi, certas vezes, uma canção que dizia que “viver é foda e morrer é difícil”. A música diz também que viver é uma necessidade e eu digo que tem também umas coisas bacanas...

Cheguei em casa cansando. Precisava voltar à velha e boa academia. Nem um quilômetro e uma subida de cem metros e já arfava. Ouvi a vizinha do lado a cantarolar “ Lava-roupa todo dia, que agonia”, sabia que era para chamar minha atenção. É que toda vez que ligam a lava-roupas, aqui em casa, para implicar com o barulho chato da máquina, eu canto esta canção. E ela, a vizinha, fica a ouvir e a espiar. Certamente ela sabe que eu sei que fora ela quem ligou pra mim no dia dos namorados, passando-se por uma admiradora por nome de Sônia, a perguntar-me se eu tinha namorada, que tipo de mulher eu gostava. Dei as respostas na medida dela, falei que meu estado civil atual era “tico-tico no fubá” e que o meu tipo favorito de mulher não tinha a ver com a etnia, tinha sim com a com inteligência emocional. Não adiantou, a encrenqueira não sabia do que se tratava essa tal inteligência emocional, só sabia o que era tico-tico no fubá. Não serviu como golpe para esmorecer aquela encrenca. A vizinha ao menos poderia prestar atenção nos versos de juventude transviada:“lava-roupa todo dia, que agonia (...) Uma mulher não deve vacilar, Cada cara representa uma mentira, Nascimento, vida e morte, quem diria...”

(...)

À noite quando me preparava para dormir, ao ver o talão de cheques que, incautamente deixei sobre a cabeceira da cama, tinha uma inscrição bem garrafal na capa: “dorme com os anjos, mas sonhe comigo!” Era coisa da Socorro. Para essa tenho que pedir socorro, não pela falta de beleza ou formosura (que no caso poderia), é que ela vive num mundo a léguas da minha idiossincrasia. E imaginar que a dita já foi uma freirinha!

Ao menos me senti na seleção desses moços, tipo o Giovany “dos Biase”; O Meninão do Guaporé; o Kiko, “belo bancário” Casoti; um Cristiano Ronaldo; um David beckham! Esses que fazem suspirar a torcida feminina. Assim daria para pegar peixe grande. Ah moleque!

Hora de acordar, certamente hoje será um outro dia.

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Joel Rogerio
Enviado por Joel Rogerio em 27/06/2006
Código do texto: T183169