DIÁLOGO ENTRE AMIGOS

DIÁLOGO ENTRE AMIGOS

Aloysio, apesar dos seus aparentes quarenta anos, era uma fonte de energia, saúde e vida. Alegre, descontraído e brincalhão, tinha as boas graças da vizinhança. E era dessas amizades gratuitas que fazia seu lazer. Magro, e corpo atleticamente dotado de músculos fortes e sadios, seguida vez se o não encontrava senão no campinho do bairro. Era participante assíduo das costumeiras “peladas” em companhia dos amigos. Vez ou outra, no fim da tarde, ia visitar em companhia da esposa, casais do seu círculo de amizades. Sempre é bm colocar o calendário de fofocas em dia, dizia ele, enquanto corre a roda um espumoso chimarrão.

Mas sempre existe aquela pessoa com quem se tem maior liberdade de expressão e empatia, e com Aloysio não era diferente. Essa pessoa era o Hortêncio Malta, seu compadre e vizinho. Uns poucos anos mais velho, moço de ares ponderados, temperamento calmo e bondoso, cristão praticante e já há muitos anos residente no bairro. O Malta, como era conhecido por todos, também por todos do bairro era benquisto. A não ser numa situação completamente atípica, ele jamais tinha um não em sua boca. Era sua maneira de ser e de agir que lhe davam as boas graças dos amigos. Quando o trabalho o permitia ou quando seus préstimos não eram requisitados em outro setor da comunidade, os dois mantinham diálogos inteligentes na casa de um ou de outro. Mas uma coisa não convergia em suas opiniões – a crença. Enquanto Hortêncio, além de bom cristão, era estudioso da ciência doutrinária e filosófica do espírito, Aloysio dizia-se ateu. Enquanto um tinha como seu lazer predileto a literatura espírita, o outro consumia boas horas do seu tempo livre lendo Jorge Amado e outros clássicos.

Quando juntos, e o assunto que versa sobre a matéria já se lhes afigurava esgotado, o tema passava a ter forma nas coisas do espírito. Era quase inevitável que o retomassem a cada encontro, e sobre ele discorriam amistosamente discordando.

Naquela tarde/noite estavam os dois tomando chimarrão na casa do Hortêncio. A Glorinha, esposa do Aloysio, marcara hora com o cabeleireiro. Enquanto ela cuidava do seu visual externo, os dois amigos gastavam seu tempo em amena conversação.

- Nenhum morto, até hoje, voltou para dar conta de sua estada no outro mundo, dizia o Aloysio.

- Nem poderia voltar, retrucou-lhe o amigo. O mortos vão para o túmulo, eles apodrecem e viram pasto de bicho Nós estamos falando do espírito; da alma de que cada ser humano é dotado, e que continua viva, apesar da morte da matéria.

- Quem me garante que eu tenho uma. Não a sinto nem a vejo. O teu Deus bem que poderia aparecer para que eu acredite nele!

- Se fosse possível a Deus passar por cima do livre arbítrio que Ele mesmo deliberou que o homem tivesse para escolher seu próprio caminho – errado ou certo – estaria escrito na bíblia: “... e o Criador apresentou-se para o Aloysio para dar testemunho da Sua existência.”

- Não precisava tanto. Só espero um sinal. – Ambos riram da piada que involuntariamente, se formou.

- Meu amigo, você já parou para notar a vida que existe na natureza? Ou acha que foi por acaso, para satisfazer os poetas que ela apareceu nada mais que por encanto? A alma é a própria vida do seu humano. Tente entender a natureza. A semente germina e resulta disso uma planta. Os astros e estrelas estão dependurados no espaço e não se chocam uns com os outros. O sol, a lua e outros planetas e os próprios astros, em movimentos diversos girando em redor uns dos outros e de si próprios, para que tenhamos dia e noite. Não é fantástico isso tudo? E vendo tudo isso, você acha que é por acaso que acontece? Que não tem um gerente muito inteligente e sábio o idealizou e que tome conta da sua maravilhosa engenhoca?

- Meu bom Hortêncio, não sou pago para imaginar coisas românticas e fantásticas. Pagam-me lá na firma para trabalhar unicamente. No momento é a única coisa em que acredito – no trabalho.

- É lógico que o trabalho faz parte, por sinal, muito importante, da rotina da nossa vida terrena. Sem ele não teríamos o sustento deste corpo material. Acontece que Deus nos dotou de inteligência. O ser humano pensa e age de acordo com essa diretriz. O homem correto tem consciência do que faz. Isto é, tem responsabilidade pelos atos que pratica. Você é torneiro mecânico, certo? Se por um erro de cálculo seu, estraga a peça torneada, no mínimo fica com raiva porque se sente responsável pelo erro. Isso é ter consciência. No meu entender a consciência é própria do espírito, e a gente, inconscientemente, pune-se por ter feito uma coisa errada. Assim também nos mortificamos quando fazemos uma injustiça para o próximo – e esse sentimento de culpa – para mim está claro, não pode originar-se da matéria.

- Aonde você quer chegar filosofando dessa maneira?

- Pense bem, Aloysio, se de mim nada sobra depois de morto senão um monte de carne podre, por que iria incomodar-me com o que possa estar ou não errado? Basta que eu tenha bastante dinheiro para comprar todo o conforto de que eu quero desfrutar, e pronto. Quando eu me for, segundo essa linha de pensamento, nada levo, é claro, mas também não preciso ficar me martirizando com os outros esses anos todos que, “por destino”, couberam-me viver.

- Não é bem assim. Todos precisam de todos para estabelecer-se o equilíbrio. Logo, todos precisam conviver civilizadamente com todos para não quebrar-se o elo entre os humanos. Eu acho que a coisa funciona assim. Se o bem rico destrói os outros, ele perde a mão-de-obra dos trouxas para lhe aumentarem sua riqueza.

- Bem pensado. Agindo assim, não terá mais que alguns anos de glória. Você estará equiparando-se a um belo touro de raça que escapou do castramento e do conseqüente corte, pois, segundo os olhos técnicos do dono, é bom reprodutor e, lógico, terá mordomias equivalentes.

- Aí que você se engana, Hortêncio. A grande diferença é a de eu ser um ser humano, dotado de inteligência e, ele, o touro, um animal; um ser inferior.

- Mas não parece. Pelas condições que igualam um e outro – o nada depois da morte - ambos são estritamente iguais. Você não reconhece as diferenças. Só as toma ingloriamente para defesa da sua tese. Pois vejamos: só por esse touro ser um bom reprodutor aprouve ao homem que o tenha em seu rebanho, de excelente gado de leite ou de corte, que faz sua fortuna. Mas aquele homem é um ser humano. Além de outros predicados, tem o dom da fala e o cérebro inteligente e pensante. Essas diferenças dignificam-no e o põe em contraste com a dignidade do touro. O empresário planejou sua fortuna, preservando um touro que lhe parecia um bom reprodutor. Assim, também, toda empresa, para sobressair-se na competição com outras, tem que ter um planejamento adequado à sua estrutura, e um gestor à altura dos seus negócios. Agora me diga – será que o universo começou a funcionar simplesmente e ninguém ainda se apresentou para dirigi-lo?

¬ Bem, meu amigo, isto são mistérios e nestes, você sabe, não me deram competência para meter-me. Vamos deixá-los para os profissionais da área.

¬ Sempre tirando o corpo fora só para dizer que nada existe superior ao homem! Pois lhe digo que é esse homem, que tem no corpo físico sua máquina e estrutura; no cérebro sua eletrodinâmica e no espírito (alma) sua inteligência, que o capacita a criar elementos de modernização do convencional do seu mundo – esse mesmo homem – tão mal emprega sua capacidade, que até abusa do reino maravilhoso que está à sua disposição. O progresso moral e material é um dos atributos naturais que a natureza nos instiga a conseguir em sempre maior aperfeiçoamento, para cumprir os planejamentos feitos pelo diretor presidente do universo, que é o seu criador, que para mim é Deus.

- Mas compreenda, Hortêncio, para mim ainda nada prova a existência desse seu tão anunciado Deus. Ou eu tenho um sério bloqueio que não me deixa ver a realidade mística que se processa ao meu redor, ou o mundo todo está sob o efeito desse magnetismo idealista e romântico. Acho ainda que a cristandade volta-se para esse Deus procurando nele uma válvula de escape para os males que, cada vez mais, assolam e afligem o mundo.

- Você é teimoso como uma mula, meu amigo. Um dia, tenho certeza, vai abrir a guarda e a razão vai pô-lo a nocaute. E aí sim, nossos diálogos vão ser produtivos. Já o são, não resta dúvidas, mas muito mais frutos trarão para ambos quando falarmos a mesma língua.

- Bem – riu o Aloysio – vai colhendo esses frutos, porque eu vou indo. A conversa hoje foi animadíssima e gostosa. Sabe, Hortêncio, gosto de você assim, segurando firme a ponta da linha. Parece um pescador forte e experiente. Mas esse peixe aqui – falou mostrando para o próprio peito – vai cansar muito ainda a sua lábia. A gente não viu o tempo passar. Já são dez horas da noite e a Dorinha deve estar esperando com o rolo de macarrão em riste.

- Não gostaria de vê-lo apanhar – riu o amigo. Vai com Deus que o guiará.

- Isso seria muito bom, visto por sua ótica, mas, por enquanto, vou com a natureza que tão gentil e prodigamente me propicia tudo aquilo que me esforço por receber e com que toco a vida em diante até ela se extinguir.

E, assim, viviam os dois amigos às turras, um em defesa do seu “nada” e o outro se achando dono da verdade absoluta, num diálogo amistosamente agressivo, cuja finalidade era o fortalecimento sempre crescente dessa bela amizade.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 27/09/2009
Código do texto: T1834116
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