UM CORPO

O dia começa quando ele não acorda. O dia passa e ele nem se dá conta do ar que respira. É um ar pesado, carregado. Cheio de uma porção de coisas sem nome. O ar passa e ele não acorda. E a vida se dá por isso mesmo. Sua noite teria sido um amontoado de pesadelos que logo pela manhã fogem das nuvens. As nuvens fogem do abismo e vão de encontro ao sol. As flores fogem do chão com medo de um dia não acordarem sob as nuvens e o sol. Buscam e passam a vida tentando tocar o sol. Tocar o ouro. Se um dia conseguissem talvez sentisse o gosto nublado do ouro interestelar. E o abismo permanece quieto, aguardando uma flor, uma nuvem. Qualquer coisa que possa roubar para si e alimentar a insaciavel sede de escuridão que os abismos sombrios têm. Roubaria do corpo a vida que lhe restava, se esse se deixasse levar pelo ar que corria livremente.

Ele não acordou e nem por isso o dia deixou de existir. As nuvens passaram correndo mais depressa que na manhã anterior. As flores não repararam o corpo estendido. Nem o misto de lágrimas e soluços na casa da esquina. As flores não repararam em nada além do sol. A manhã passou e o corpo continuou engessado e viciado na posição. A tarde chegou, as flores cansaram de se esticar e petrificaram. As plantas imitavam o corpo. As nuvens continuaram correndo até que a última nuvem não escapou do abismo e a noite veio. A noite veio e o corpo tossiu. O corpo que antes era pedra, que antes era concreto. O corpo tossiu e as plantas exalaram um cheiro novo. Um cheiro novo para o corpo, que agora tinha vida. O corpo que agora cheirava e sentia . A planta exalou e lá mesmo ficou. Ficou e o corpo se foi. Levantou-se e foi caminhando em direção à esquina. Na esquina não se ouvia barulho. Era noite e o barulho foi dormir, junto do sol, o barulho se foi e nada se escutava a não ser a respiração do corpo.

O dia veio, o sol veio, as nuvens vieram, a planta subiu, o barulho voltou, o cheiro sumiu. O corpo tendo virado a esquina não se via na paisagem. A paisagem ficou e o corpo nem viu. O dia começou e o corpo não teve fim.