Jogos do destino

Trazia nas mãos a pasta escura, ia caminhando, tentando em vão escondê-la sob o casaco, a chuva caia ruidosa, a rua estava em total silencio. Na pasta, papeis importantes da empresa, no coração apenas a dor de descobrir que sua amada estava saindo com o chefe da empresa, nunca pensou que ela fosse uma vadiazinha tão baixa, fazia sexo por dinheiro e status, o velho era podre de rico. O coração acelerava, o corpo moído por se afundar no serviço para tentar esquecer, o estomago doído, tudo em caos por dentro e a chuva caindo sem cessar.

-Esta chuva era tudo o que faltava neste momento.

Mal disse tais palavras ouviu passos atrás de si, era o som de saltos de mulher apressados, olhou para trás, uma moça alta, morena, com um corpo magro porém muito belo, roupa colada, ensopada de chuva tentava ir para algum lugar. Parecia uma moça séria (mas Helena também não parecia?), foi andando mais devagar, ela se aproximou:

-Com licença, estou procurando o n°578, mas, com esta chuva, mal consigo ver as placas de numeração, você pode me ajudar.

-Sim, é o número do prédio onde moro, pode me acompanhar se quiser.

Ela sorriu constrangida, caminharam mudos e rápido, esconderam-se na portaria, ele ia destrancar a porta:

-Qual apartamento está indo? Está sendo esperada?

-É no numero –pegou um papel úmido nas mãos- 605.

Olhou para ela assustado.

-Está me procurando sou eu quem mora lá!

Ela se assustou, olhou de alto a baixo, pensou um pouco.

-Luciano?

-Você me conhece? Quem é você?

Aquela mulher bonita o conhecia, estava certo de que não se esqueceria de uma moça daquele tipo.

-Luciano, você mudou muito e eu também –sorriu- sou sua prima Selene, mandei uma carta para você há cerca de 6 meses dizendo que pretendia morar e estudar aqui, na época você disse que não teria problema, se eu avisasse com antecedência, mas estou tentando ligar para o número que me passou na carta e não atendia, e eu precisava vir hoje, o vestibular é daqui dois dias....

Tinha passado o tempo todo fora de casa aqueles dias, pois trabalhava jornada dupla para tentar esquecer Helena. A secretaria eletrônica tinha encontrando seu fim na ultima discussão. Não contava com aquilo, mas o que poderia fazer?!

Trazia uma bolsa média, algo que para uma mulher era até estranho, mas logo descobriu que as malas seriam enviadas no próximo ônibus.

Ele mostrou o quarto dela, deu tudo o que ela poderia precisar, mostrou a geladeira, se desculpou por não dar atenção e se deitou.

O corpo dolorido pelos excessos, os segundos passando letamente naquela noite que era iluminada de tempos em tempos por raios, o som incessante dos pingos caídos do céu enchiam-no da sensação de abandono, começou a pensar em Helena, era uma moça recatada, cheia de bons princípios, lutava pelos seus sonhos, como podia ter se vendido daquele modo?

Abriu gaveta do criado, dentro uma foto, era a festa da empresa do ultimo ano, apareciam muitas pessoas na foto, de repente, com aperto no peito se lembrou que em um momento daquela festa, que Helena e ele estavam separados, foi procurá-la, ela conversava animadamente com o diretor, sorria e gesticulava... O coração gelou, teria sido enganado todos estes meses? Agora pensando melhor lembrava-se de várias noites que não conseguiu entrar em contato com ela, de algum modo tudo se encaixava, não tinha sido abandonado, tinha sido literalmente traído!

Ouviu um barulho do quarto do lado, levantou depressa, viu Selene dormindo serenamente e um abajur no chão, a janela tinha ficado um pouco aberta e o vento que entrava derrubou. Ela estava tão quieta que a tomaria por morta, ficou observando-a, notou uma tatuagem no pé da moça: S e L pensou que talvez fosse homenagem a algum namorado, achou aquilo tolo, principalmente no caso de ser traída, como ele foi. Voltou para o seu quarto e adormeceu.

Foi acordado pelo delicioso cheiro de queijo, biscoitos e misto quente o esperavam, ele gostou de ser servido, gostou ainda mais do sorriso matinal da moça, os cabelos não estavam mais encharcados como no dia anterior, estavam penteados e presos, os cachos caindo pelos ombros. Ficaram algum tempo conversando, era sábado e o dia amanhecera sem nuvens. Luciano se ofereceu para mostrar a cidade, a moça se deslumbrou com tudo, e ele tinha que admitir que companhia dela era incrível, Helena desaparecia quando Selene sorria, estava se encantando por ela, e isto era mágico!

-Estou com fome...

-O que quer comer?

-Ah, você quem sabe, eu não conheço nada, tudo o que sei é que meu estomago esta até roncando.

Sentaram à mesa na parte externa de um restaurante bem simples, era decorado com arte, mas sem luxos. Comeram e riram muito, depois foram para o apartamento dele. Levaram alguns filmes, e se sentaram preguiçosamente no sofá, a moça estava tensa, o vestibular era no dia seguinte e sempre bate a sensação de “não estar suficientemente preparada”...

-Quantos anos você tem mesmo Selene?

-Engraçado você não lembrar que temos exatamente 4 anos de diferença de idade, já que nasci no mesmo dia que você...

-Se soubesse como minha vida mudou, e como tudo se virou de cabeça pra baixo, entenderia minha falta de memória... Então você tem 23 anos...

-Como é viver na capital Luciano?

-Estressante...

-Como você imaginava em outros aspectos?

-Sabe... Sonhar é mais agradável... Não há a monotonia da rotina em um sonho, e nem a solidão...

Ficou em silêncio, de olhos baixos, não queria preocupá-la, afinal no dia seguinte faria vestibular...

-Soube que estava trabalhando com algumas terapias alternativas não é?

-Sim, na verdade ainda estou, só que vou me especializar e voltar para lá...

-E se acostumar a ficar aqui?

-É uma possibilidade...-parou um instante- e aí, está namorando?

-Terminei um relacionamento –engoliu as lagrimas- há pouco tempo...

Ficou olhando para Luciano, tentando ler alem das palavras, se sentiu meio nu, pois começava a vivenciar novamente as cumplicidades da adolescência.

-E você, deixou algum apaixonada por lá?

-Não namoro há um bom tempo, estava me dedicando ao trabalho, já sofri demais no amor para ainda crer...

-Não diga isso, você é jovem demais para tanta desilusão!

-Você sempre dizia que eu não cabia nos versos de poeta algum, pois era inconstante demais...-desviou o olhar- talvez estivesse certo, não sou previsível e isto assusta os homens...

Sentiu um arrepio frio na nuca. A janela aberta deixava entrar um ventinho, e a isto atribuiu tal arrepio, se levantou e foi fechá-la, o céu estava ficando feio, certamente choveria pela madrugada.

-Éramos tão jovens...

-Éramos meninos, crédulos, cheios de sonhos que hoje parecem loucura...

Sentiu vontade de abraçá-la... De ser abraçado, protegido de sua desilusão...

Quando acordou, de sobressalto, suando bicas, coração disparado sem a clara lembrança do sonho, olhou a hora, ficou atordoado, Selene chegaria atrasada! Foi correndo ao quarto dela, mas ela não estava mais lá. Ela sabia chegar lá, tinha mostrado o lugar e o ônibus, mas pretendia levá-la, se sentiu um pouco culpado, afinal e se ela tivesse se atrasado? Ele era um estúpido!

O relógio marcou 13:00, ela entrou cabisbaixa.

-Você está de volta -ficou preocupado com a expressão dela- como foi a prova?

-Estava bem difícil... –fez um carinha de decepcionada- melhor esperar o resultado...

-Quer sair para comer algo? Não tem nada para comer aqui.

-Sim, mas preciso tomar um banho e me arrumar, e se estiver com muita fome...

-Espero sim, não precisa ter pressa...

Deu um meio sorriso.

Tinha que admitir como ela é linda, sua delicadeza, seriedade e força o assombravam, talvez por estar acostumado a mulheres sedutoras demais, daquelas que se afirmavam em ter poder e serem capazes de conquistar quem fosse. A sutileza de ser apenas quem é, e sinceridade e espontaneidade dos gestos, a clareza da expressão, tinha dentro dos olhos algo que me atraia...

Enquanto esperava começou a lembrar de quando eram adolescentes, ele com 18, ela com 14, linda e inteligente, ele um menino ainda, que a admirava sem admitir. Lembra de ter beijado aqueles lábios, acariciado aquele corpo várias vezes na época que ficaram juntos. Era inocente o amor dos dois, ele a respeitava. Quando em uma noite, tiveram os corpos entregues aos desejos mais intensos, ele tinha de admitir que a amou mais que a si mesmo. Aos 20, quando foi para a capital, estava disposto a deixar tudo para trás, tinham terminado e ela namorava outro, e ele em sua lista de mulheres, desilusão ou mera galinhagem, não pensava a respeito, queria curtir a vida. Trazia marcado em seu corpo e mente o amor puro dois, sacramentado como lembrança digna de nostalgia, mas não cabia reviver ali, com ela sob seu teto, a crença tola de reviver algo de tempos remotos.

Chegou a sala silenciosamente, o viu perdido em pensamentos, não quis assustá-lo, se aproximou e tocou levemente em seu braço, ele levantou os olhos como quem acorda de um devaneio profundo:

-Está pronta linda? Então vamos...

Não notou a espontaneidade do modo como a tratou, ela sorriu amavelmente e desceram, pegaram o carro e foram para um dos restaurantes preferidos dele, que Helena, particularmente, detestava.

-Que lugar lindo! Lembra o restaurante Luciu’s, na praça Sonia Alencar!

A lembrança veio a mente como em um flash, realmente tinham semelhança, e aquilo aqueceu seu coração, pois o via como refugio, e agora entendia o que vivenciava de modo inconsciente: revivia naquele ambiente a segurança do abrigo de suas vivencias anteriores.

-Adoro este lugar...

Conversaram até que o sol pusesse sobre o horizonte, e estendeu-se até a madrugada bater à porta notou sinais de cansaço no rosto, e olhou no relógio, quase meia noite, passaram literalmente um dia inteiro ali. Foram embora, pois a semana seria árdua. Mas algo o angustiava, ela se mostrava um porto seguro, que ele temia ser o consolo de sua desilusão, ela não merecia este lugar em sua vida, tinha que viver seu luto, sarar e a partir daí buscar novas possibilidades, se ficaria em sua casa, com ele, teria que desvencilhar afetos eróticos....

T Sophie
Enviado por T Sophie em 09/10/2009
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