O Julgamento de Miguel

Os olhos abriram-se assustados, Miguel encarou tudo a sua frente: um inexpressivo teto amarelo e uma longa lâmpada fluorescente branca, ofuscando-lhe a mente. O silêncio era assustador, sem barulho algum, nenhuma movimentação e infinitos ecos vazios, pura solidão. Passou alguns segundos, eternos milésimos de incompreensão da situação. Seu corpo extraviado permanecia imóvel, jogado sobre a cama, decidiu se levantar, foi o que fez. Pôs-se de pé, caiu sentado.

O horror tomou conta do seu ser: Ele podia ver a si mesmo, ainda deitado na cama. Agora era em dois: Espírito e carne? Perguntou-se voltando a ficar de pé e virando-se para si mesmo. Coitado!!! A primeira sensação foi de pena de si mesmo. Como isso havia acontecido?

" Com um longo sorriso, Miguel afastou-se da banca, trazendo consigo seu jornal. Quando jovem, ainda estudante de jornalismo, ele havia se comprometido a duas regras de sobrevivência feliz: primeiro, comprar todos os dias pelo menos um jornal e a Segunda: fazer amor pelo menos três vezes na semana. A primeira ele ainda cumpre com todo a satisfação, já a Segunda ele cumpriu apenas até os 52 anos, ainda que, com exaustão.

Deixando a banca, conferia as matérias da primeira página, enquanto caminhava até o seu carro no outro lado da rua, Foi seu último instante de vida. Um ônibus o encontrou de cheio, no centro da avenida, o jogando contra o ar. As folhas do jornal se espalharam ao vento, enquanto o corpo caia indefeso e sem vida no chão."

A sensação de ser espírito, e não carne, isso o assustava. Como seria então, agora? O corpo desfigurado, talvez já frio e com toda certeza sofrendo decomposição, jogado em cima daquela cama de cimento. O que iriam fazer? Enterra-lo, e quando descobrissem que sua esposa o odeia, sua filha é uma famosa atriz pornô e seu único irmão é um líder de uma comunidade racista? A sensação de Dejá vù o deixou desconsertado, Como sua vida era um monstro, sem ética, valor ou moral. Pura tristeza. Não o que ele havia sonhado.

"Sentado, quieto e calado. Miguel assistia ao pai que dirigia orgulhoso, sua novíssima Brasília vermelha. O carro de seus sonhos. Podia perceber as feições maduras do pai, além da aparência enganosa de sua idade; incrivelmente ele não aparentava seus quase setenta anos, parecia um coroa de novela, alto e robusto. Por isso sua mãe movia um grande ciúme, sempre o pedia para não tirar a atenção de seu pai, como um detetive. Essa era a sua função.

- Você quer dirigir um pouco? - Perguntou o pai, olhando-o de uma vez. Deixando exalar um forte cheiro de álcool. Isso era o que o pequeno Miguel, mas queria na vida. O velho parou o carro, abriu a porta e saltou.

Um tiro ecoou.

- Saia do carro!!! - Mandou um homem, assustadoramente horrível. Empurrando-o contra a porta, com um brilhoso revolver. O garoto foi jogado para fora. Enquanto a reluzente Brasília ia embora. O velho pai, sussurrava palavras incompreensíveis para o filho que o abraçava desconsolado."

Caminhou para trás, cada vez sentindo mais pena de si: Como ele havia sofrido? Era assim que Miguel passou a si tratar, aquele morto sobre o cimento, era o ele, e aquele que caminhava sem destino, o fantasma, que podia relembrar acontecimentos.

- Que feio, hein?!? - Disse uma doce voa feminina ao seu lado. Ele virou para ela assustado, a enorme mulher estava completamente nua, pecado original.

- Você também está morta ou eu posso falar com os vivos? - Miguel perguntou anelante, seu olhos não poderiam fugir pelo corpo da outra, isso apenas aumentaria sua provavél sentença de ir para o inferno. Segurou-se.

- Claro, overdose! - Disse ela, sem o encarar e aparentemente calma.

- Você se drogava? - Miguel pareceu assustado. A mulher fez apenas um movimento de sim, mexendo a cabeça, mas logo emendou uma exclamação:

- Você também não tinha defeitos? - Concluiu a pergunta com um sorriso malicioso.

"A porta do elevador abriu-se e homem saiu caminhando calmamente, trazendo consigo sua enorme bolsa de viagens e os tacos do golf, a felicidade de está de folga em um Domingo, em que as revistas de negócios pareciam fervilhar mais que durante as semanas, era um milagre. Ele cambaleou com suas bolsas até o carro.

- Férias ou Folga? - Perguntou um outro aproximando-se, o qual escolheu nem dá atenção. Ele reconheu o indivíduo pela voz, quem não conheceria aquela chata voz rouca? Era Miguel, um devastador velhaco orgulhoso, que se consumia em inveja e rancor.

- Parece está contente? - Brandou Miguel chegando mais perto, percebendo que sua presença era dada como inexistente, e era isso que ele queria, que ninguém o visse ali dentro. - Então a revista deve está lhe pagando bem, comprou até tacos de golf!!!

- Miguel. - Retrucou o outro. - Eu sei que você me culpa pela perca de seu emprego, mas saiba o erro foi seu, afinal, quem não sabe que a economia de uma empresa baseia-se no fluxo de seu caixa... - Não teve como continuar, a lâmina de um canivete cortou-lhe o peito, perfurando com toda a certeza, seu coração. Miguel retirou cuidadosamente o canivete, enquanto o corpo desfalecia."

Iria para o inferno!!! Isso era certeza, Miguel encarava a mulher a sua frente sem libido algum, não era mais carne, podia assistir todo o seu corpo. Estava morto!!! Mas sua mente, parecia existir, assim como seus pensamentos, que continuavam ali, o fazendo relembrar de cada detalhe de sua vida.

- E quando vamos para o céu ou para o inferno? - Perguntou ele, envergonhado, e se tudo aquilo fosse bobagem.

- Não sei, acho que já devem está vindo nos buscar. - Ele parecia contente, sem medo algum.

- E se formos para o inferno? - Miguel demonstrou sua grande duvida.

- Bom, talvez não seja tão ruim assim... acho que em algum momento teríamos que pagar nossas sentenças.

Miguel a olhou pensativo, será que ele já não havia pago, pelos seus crimes?

"O agente entregou o jornal, Miguel escondido pagou o combinado. Os pegaram caminhos alternados, cada um para lado opostos do corredor. Miguel logo chegou a sua cela, encarou o companheiro, e sentou-se na cama.

- O Maomé veio atrás de você!!!

Miguel sentiu um frio subir-lhe pelas entranhas.

- O que ele queria? Ainda bem que eu não estava. - Tentou concentrar-se no seu jornal. O Outro riu-se

- Ele deixou, isso para você. - Apontou para uma caixa no chão. Miguel curvou-se e a apanhou. Vários sapos enormes pularam para fora.

- Merda!!! - Gritou soltando a caixa, que caiu, espalhando pelo chão várias fotografias. Miguel apanhou uma delas. Era ele, nu, no banheiro.

- O que isso quer dizer? - Fez a pergunta assustado.

- Você é o próximo!!! - O companheiro caiu nas gargalhadas. Miguel teve vontade de matá-lo, mas o medo que lhe subia no corpo, era um sentimento muito maior."

Miguel abriu os olhos, esquecer seus pecado naquele momento era o melhor remédio. A mulher caminhava, agora, ao redor do seu corpo, sobre o cimento. Não parecia assustada.

- Você tem sorte, de está apenas em pós-morte. - Disse ela calmamente.

- Como assim: pós-morte? - Ele aproximou-se

- Você não está completamente morto, pode voltar a viver, isso se ele não vier logo!!! - Ela disse as últimas palavras, quase que sussurrando.

- Ele quem?

- O Diabo. - Ela pareceu grosseira com as palavras.

- Você disse que não sabia se iríamos para o céu ou inferno? - Miguel já nada compreendia.

- Sim... Não sei!!! - Enquanto falava, crescia nas costas da bela mulher, gigantescas asas, plumas alvas e bem adornadas. - Ele é quem sabe. - Disse apontando para cima.

- Então você veio me buscar? - Miguel sentiu esperanças em ir para o céu. Indo ao seu encontro.

- Você está em pós-morte, ainda pode viver, basta você me dizer três defeitos seus, para que ele possa te perdoar!!! - Novamente, a mulher de asas apontou para cima, melancolicamente.

- Eu já matei, desejei a mulher do próximo, blasfêmia. - Ele enumerou rapidamente.

- Ah, não... você blasfemou? - Ela parecia assustada.

- Sim, acho que blasfemei, Ah... tem hora que não acreditamos na existência de Deus. - Miguel tentou tomar explicações. Com essas palavras fez com que a mulher a sua frente, se diluísse no espaço. Desaparecendo.

Ficando somente com ele na sala. Miguel sentiu que não havia mais esperanças, o inferno era o seu lugar, e o tal de pós-morte, era mentira daquela anjo gostosa. Uma forte luz resplandeceu, junto a um enorme barulho, que ecoou por todos os lados, junto a uma enorme dor de cabeça.

Os olhos abriram-se assustados, Miguel encarou tudo a sua frente: um inexpressivo teto amarelo e uma longa lâmpada fluorescente branca, ofuscando-lhe a mente. O silêncio era assustador, sem barulho algum, nenhuma movimentação e infinitos ecos vazios, pura solidão. Passou alguns segundos, eternos milésimos de incompreensão da situação. Seu corpo extraviado permanecia imóvel, jogado sobre a cama, decidiu se levantar, foi o que fez. Pôs-se de pé, podia sentir sua carne. Estava vivo.

- Ele acordou-se!!! - Disse alguém. Miguel virou-se para a porta, de onde tinha vindo o barulho. Era tarde demais, para correr. Dois policiais veio ao seu encontro.

- O que vocês vão fazer? - Perguntou assustado.

- Te levar de volta...

- Ah, não. - Miguel correu até a janela, mas antes que pudesse pular, foi interceptado, por um dos policiais.

- Não tem como fugir, aquele é o seu inferno.

Os dois o puxaram agressivamente, enquanto ele gritava, tentando poder sair correndo. Era impossível. Aquele era o seu julgamento.

surface
Enviado por surface em 02/07/2006
Código do texto: T186176