Apenas bons amigos

Gostava de ouvir as intermináveis discussões de D. Olivia e D. Lucia...A primeira, madrinha de Clarinha, minha irmã adotiva, morava numa casa de fundos de um imóvel de sua propriedade; a outra sua inquilina morava na casa da frente onde havia um jardim de rosas. Costumavam discutir sobre as excelências dos próprios maridos...Seu Pereira, marido de D. Olivia tinha morrido louco anos atrás, e Ismael, marido de D. Lucia, forte como um touro, trabalhava nos correios. Conhecia histórias verdadeiramente fascinantes de Seu Pereira. Não sei em que trabalhava, mas sabia muitos de seus desatinos depois que enlouqueceu...Certa ocasião fez com que a mulher entrasse numa banheira com água quentíssima, para exorcizar espíritos maus, que lhe estariam perturbando...De outra feita, destelhou a casa, juntou as telhas no chão e determinou que a pobre mulher as mandasse de volta ao telhado; coisa absolutamente impossível para ela, o que lhe valia ameaças e xingamentos. Como era habitual nos casos semelhantes, foi internado num hospício de onde saiu para o cemitério...D.Lucia mulher educada nos subúrbios de Bangu, e muito bem educada, gostava de leituras e usava palavreado difícil; tinha extrema franqueza quando narrava as peripécias de sua inesquecível lua de mel...Ismael era homem mesmo! Não se cansava de enfatizar, quando queria criticar o marido da outra, que esperou 15 dias para consumar o casamento, segundo a viúva, por excesso de delicadeza e distinção. Eu me relacionava muito bem com ambas, visitando-as diariamente com a desenvoltura que meus 12 e 13 anos permitiam...Contava-lhes histórias intermináveis e roteiros de filmes, sendo que D. Lucia apreciou muito minha versão de Miguel Strogoff o mensageiro do Czar, filme de 1943 baseado em conto de Julio Verne; não era para menos, pois, até a música do filme era de minha autoria...Costumávamos tomar café à tarde juntos...Éramos apenas bons amigos, mas havia uma peculiaridade naquele relacionamento...Não conseguia relacionar-me com o marido, raramente indo à sua casa quando ele lá estivesse! Conhecia seus inúmeros horários, inclusive quando fazia serão, o que me permitia visitá-la à noite...Tinha a cara fechada, estrábico e musculoso, e raspava a cabeça com navalha; não fumava e andava sempre apressado. Muitos anos depois, uma vizinha me disse que D.Lucia dera pra beber e discursava no portão...Não tinha conseguido ter filho! Dos demais, em algum dia darei conta.