O jogo da mente

Existe um momento, por assim dizer, infrequente e de profunda ponderação, no qual tanto o corpo como a alma pressentem a indiscutível necessidade de assentar-se sobre a maior montanha de todas para olhar o mundo, sem enxergá-lo. Esses instantes, que são breves, conduzem o venerável caboclo matuto a seus campos e, da mesma forma conduz às ruas o habitante das suntuosas savanas de betume.

Como num dia desses, que estava escuro para o lado de dentro, porém muito claro nas planícies setentrionais, porque era outono, desci de um ônibus circular numa rua qualquer e adentrei-me imediatamente no bar chamado Deja-vu. Lugar elegante e acolhedor, pelo menos às dezoito horas de uma cinzenta quinta-feira, onde me senti em um pub londrino mesmo sem nunca ter estado lá.

Reparei que ninguém ficou admirado em vista dos meus trajes grosseiros e isso me trouxe leve conforto. Tudo correu bem até aí, porque tudo é bom quando nada há. Jazz ao fundo, das vinte mesas foram ocupadas três ou quatro e um garçom estressado a limpar o balcão onde descansei os cotovelos. Paz de homens perdidos.

O que aconteceu em seguida me surpreendeu completamente, como se on the rocks e o solo de sax tivessem despertado minha cabeça numa repentina percepção. Olhei, enquanto o ambiente me acompanhava, uma garota na mesa do canto, a que tinha melhor vista para o lado externo do estabelecimento e para mim estava de costas. Eu a conheci, os longos cabelos de mel, o jeito como segura o copo e que abaixa e levanta lentamente a cabeça pensativa. Sim, a reconheci, mas não recordei de onde nem de quando. Um vínculo invisível, abstrato e totalmente misterioso, de um passado distante.

Estava correndo um momento único, inesquecível, já no terceiro copo a imaginar sua beleza, seu rosto, suas expressões. Ela virou o rosto num ângulo de noventa graus à direita, mais de uma vez, quando entendi o estado daquela mulher. Vivia uma solidão, claramente opcional e ao mesmo tempo inevitável. Não pensava em nada, e era justamente o que via lá fora: o nada. Os movimentos secos e desordenados, de quem escreve o próprio epitáfio, prevendo o fim eram tão fortemente familiares como se nos conhecêsse-mos desde a infância.

Por mais de uma hora permanecemos nesse imprevisível impasse, até ela se levantar, pagar a conta e ir embora. Não me era mais uma pessoa próxima logo que a vi pela vidraça ao acender o cigarro e presentear-me de longe com uma breve olhada. Não, não era aquela que pensei que fosse, nem a qual gostaria que tivesse sido, pois na realidade nenhuma das duas existiu, a não ser por àquela hora.

Depois de tudo andei um pouco mais na mesma rua, parando em esquinas, quando visualizei à distancia , a iluminação do bar, o seu nome e uma frase não existente: “ Felizes os que a ele não retornarem.”

Luciano Osawa
Enviado por Luciano Osawa em 12/07/2006
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