Passarinhos na janela

Da janela do seu quarto, avistou um casal de passarinhos, queria tocá-los, mas não tinha certeza se conseguiria. Resolveu, então, debruçar-se no peitoril, estendeu as mãos e, quando estava quase alcançando um deles, o animalzinho fugiu assustado, o que o deixou frustrado.

Virou-se para a porta, estava fechada e era muito cedo para mais alguém estar acordado. Olhou para Elisa, ela dormia profundamente. Com entusiasmo, viu um outro deles, bem no galho à sua frente. Fez uma nova tentativa e o pequeno bem-te-vi voou para outro galho. Debruçou-se ainda mais, esticou-se o máximo que pôde e, de novo, não conseguiu o que tencionava fazer. E, de repente, numa nova e frustrada tentativa, perdeu o equilíbrio e, como a janela era baixa e não possuía grades, não pôde se segurar e foi cair no jardim, dois andares abaixo de seu quarto. Espantou todos os passarinhos que ali estavam.

Uma hora após o acidente, abriu os olhos, via fantasmas circulando à sua volta. Tentou se levantar, mas não conseguiu, sentia muita dor. Piscou várias vezes e respirou aliviado quando reconheceu o rosto simpático de Luiza, uma enfermeira.

- Vejam só quem acordou?! O que queria fazer, se matar? Não se mexa, por favor...

- Os bem-te-vis... eu queria pegar um, mas eles não gostam de mim, não querem ser meus amigos... – seus olhos já começavam a lacrimejar.

- Depois vamos ter uma conversa com eles, está bem?

- Você vai brigar com eles?

- Vou! É claro, quem mandou não quererem brincar com você?! – ela sorriu, vendo a expressão de satisfação nos olhos dele.

Passou uma semana ali, aos cuidados de Luiza. Tinha quebrado o braço esquerdo e ganhado muitos arranhões por causa dos galhos. Mas nem ela, nem Dr. Paulo acreditaram na história dos passarinhos.

No refeitório, sentados lado a lado, conversavam como velhos amigos:

- Você pegou?! – perguntava Elisa, encantada.

- Quase, faltou muito pouco! Ele fugiu, mas Luiza e eu vamos ter uma conversa com todos eles!

- Mas conte de novo! – pedia Carlos.

E assim transcorreu a tarde. Eduardo não cansava de relatar, mesmo que repetidamente, sua aventura de uma semana atrás para os outros. A cada vez que ele contava novo detalhe acrescentava e todos gostavam de ouvi-lo.

Dr. Paulo lhe dissera que Rosa o visitaria, pois já ficara sabendo do acontecimento mais comentado do momento.

Rosa era a irmã de Eduardo, um ano mais nova do que ele, tendo 27 anos. Perdera o marido havia um ano e tinha um filho de sete. Gabriel era o seu nome, herdara os profundos e brilhantes olhos azuis do tio.

Muitos podiam julgar fácil a vida que Rosa levava, mas quem a conhecia de verdade sabia que não era bem assim. Não era rica, mas tinha dinheiro o suficiente para levar uma vida tranqüila e confortável. Seu trabalho não exigia que saísse de casa, pois o desempenhava através do computador.

Há três anos, quando Gabriel estava com quatro, começaram a surgir os problemas. Ele era uma criança encantadora: alegre, educada, bonita e bondosa. De fato, ainda era. Mas agora, mesmo não sabendo de sua gravidade, tinha uma doença.

Rosa e Leonardo, pais de Gabriel descobriram que o menino tinha câncer no cérebro. Ao longo desses três anos, perdera totalmente a mobilidade das pernas, pois o tumor afetara a parte responsável pela locomoção. No começo, Leonardo tentou dar o maior apoio possível ao filho e à esposa, mas após dois anos de luta incessante, não conseguiu mais suportar o peso do fardo que carregava. Não vai mais qualquer saída e a visão do filho doente na cama o atormentava cada dia mais, seguindo-o por toda parte.

Assim, a fim de acabar com todo aquele sofrimento, suicidou-se com um tiro na cabeça. Morto, não podia mais sentir dor. Rosa só vivera no ano seguinte e vivia agora por causa do filho. Não podia desistir e faria com que ele se curasse. Ela sabia que ele era bem mais forte do que ela e era o brilho daqueles olhos azuis que a encorajava, que lhe dava forças.

Ainda tinha o irmão Eduardo que, desde criança, tinha problemas mentais. Não evoluíra normalmente e apesar, dos 28 anos, sua idade mental era de seis. Quando a doença de Gabriel foi descoberta, Eduardo, que morava com a irmã, teve de ser mandado para um hospital psiquiátrico. Não havia como cuidar, ao mesmo tempo, de duas crianças, não no estado em que as coisas se encontravam.

Gabriel e Rosa tinham acabado de voltar para casa, depois de alguns dias que ele ficara internado para as sessões de quimioterapia, quando ela recebera o telefonema do psiquiatra do hospital de Eduardo, Dr. Paulo.

Rosa e o filho seguiram para onde vivia Eduardo. Gabriel, admirado com o jardim tão florido e alegre, exclamou:

- Mamãe, olhe! Quantos bem-te-vis! Aposto que tio Edu já pegou algum...

Ela sorriu, tirou Gabriel do carro e colocou-o na cadeira de rodas. O pessoal que trabalhava ali sempre os recebia muito bem e permitia que passeassem no jardim e pelo prédio todo. Não encontrando Eduardo no quarto, ela, Rosa perguntou por ele a Luiza.

- No jardim... eu acho. Vamos ver!

O jardim era cercado, para que os internos do hospital não fugissem. Atrás de um arbusto, Eduardo, tomando cuidado com o braço quebrado, observava atentamente um grupo de rouxinóis, aproximando-se devagar.

- Venham... venham... – ele sussurrava.

Gabriel apontou para o lugar de onde vinham os sons. Rosa foi até lá, empurrando o filho.

- Surpresa! – Gabriel gritou.

- Ah, não! Gabriel, você espantou os meus amigos! Não... por que você fez isso?

- Desculpe, tio... eu não sabia, desculpe...

Ele olhou para o menino, depois sorriu e andou desajeitadamente em sua direção.

- Tudo bem, Gabriel! Depois eu converso com eles... vou precisar pedir desculpas, porque você os espantou... cadê o meu abraço, hein?

A criança abriu os braços para acolher o tio, eles se davam muito bem.

Gabriel o adorava, pedindo constantemente para a mãe que deixasse o tio voltar para casa. Ele sabia o quanto Eduardo era especial

- Oi, Rosinha! – falou, com alegria, pulando na frente dela.

Ela suspirou e respondeu com um abraço ao caloroso cumprimento do irmão.

- Edu, está sol aqui, vamos conversar lá dentro?

- Ah, mas...

- Por favor, vamos?

- Tá bom, tá bom! – contrariado, foi batendo os pés.

Chegando a seu quarto, Eduardo sentou-se com as pernas juntas e as mãos entre os joelhos, balançando o corpo para frente e para trás. A cadeira de rodas fora colocada ao lado dele. Rosa acomodou-se numa poltrona e logo disse:

- Tem uma coisa a me contar, não é? Que história é essa de se atirar pela janela? – apesar de o Dr. Paulo achar que ele tentara o suicídio, mas ela não acreditava nessa hipótese. Conhecia Eduardo o suficiente para saber que ele amava viver e era feliz, do jeito dele.

E mais uma versão da história foi contada. Gabriel se divertiu muito o vendo imitar os sons e gestos dos passarinhos. Quando chegou a hora de ir embora, Gabriel se recusou a deixar o tio. Então, quando ele não estava em casa e sim na de um amiguinho, como poucas vezes Rosa permitia, ela voltou ao hospital. Tomara a decisão depois de uma conversa que tivera com Dr. Paulo, ele lhe dissera que nada havia a fazer em relação a Eduardo, que ele ficaria daquele jeito pelo resto da vida. Ela poderia muito bem contratar uma pessoa para cuidar dele e Gabriel também já estava melhor, o tio faria companhia a ele.

- Rosinha? O que está fazendo aqui? Quer chocolate? – ele estava com a boca e as mãos lambuzadas do doce.

- Não. Obrigada.

- Sente-se aqui, neste banquinho.

Ele perguntou se ele gostaria de voltar para casa e ele ficou maravilhado porque, todos os dias, poderia brincar com Gabriel.

Duas semanas depois, num sábado chuvoso, quando Gabriel examinava o escorregar das gotas de chuva no vitrô da sala e Rosa preparava o almoço, Gabriel soltou um grito de seu quarto:

- Mamãe! Venha aqui... estou passando mal!

Rosa correu até o menino, abraçou-o e ligou para o hospital onde o filho fazia tratamento. Chegaram lá e, por sorte, o médico de Gabriel estava de plantão.

Eduardo dormia no ombro de Rosa, quando Dr. Otávio fora informar o estado de Gabriel. Rosa pensava nas duas crianças... como se davam bem, eram tão fortes.. eram tão frágeis...

- Como já disse, Rosa, ele passou por uma cirurgia delicadíssima. – já estavam ali há quase dez horas.

- E como ele está, agora?

- Lamento, mas não quero que alimente esperanças. Há pouquíssimas chances de ele ser salvo...

Enquanto conversavam, Eduardo esgueirou-se pelo corredor e saiu a procurar o sobrinho. Muito emocionada, Rosa alcançou-o, acompanhada pelo médico, que os conduziu até o quarto do menino.

Lá estava ele, aparentemente dormindo.

- Vou deixá-los a sós. – falou o médico, pesaroso.

Rosa aproximou-se e segurou uma mão do filho, tentando conter as lágrimas. Eduardo segurou a outra mão do menino. Neste momento, ele abriu os olhos, falando muito baixinho:

- Tio... continue cuidando... – tinha dificuldade para respirar – cuidando... dos... passarinhos... e de... mamãe também. Eu... nunca... os deixarei... os passarinhos... tio...

E adormeceu, para sempre. Os médicos tentaram reanima-lo, mas sem sucesso. Na mãozinha que Eduardo há pouco segurara, havia um papel. Em casa, mais tarde, ele começou a examinar o desenho que pegara do sobrinho. Ele nunca vira nada igual, apesar de tantas espécies que conhecia e observava de sua janela, no hospital. Foi procurar a opinião de um profissional e ele lhe afirmara que era apenas um desenho de criança.

Um mês se passou da morte de Gabriel, tudo estava voltando ao normal. Até que um dia, no quarto em que dormia, ouviu um barulhinho na janela. Para a sua surpresa, ele era muito semelhante ao desenho, do qual ainda lembrava os detalhes. Abriu a janela e o pequeno ser entrou, deu uma volta no ar por todo o quarto e, quando Eduardo fez menção de pegá-lo, ele nem resistiu e logo voou para seu ombro e deixou que o acomodasse nas mãos. Era um passarinho, um lindo rouxinol, de cores muito exóticas, como nunca vira igual. “Continue cuidando dos passarinhos... eu nunca os deixarei...”.

De alguma forma, ele sabia, mesmo sem ter conhecimento disso, que Gabriel realmente não os deixaria. E que lhe enviara um presente, um lindo presente.

Maria Flor
Enviado por Maria Flor em 17/07/2006
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