O anjo do balanço

O décimo dia do que, para ela, era torturante já estava chegando ao fim. Só, naquela paisagem branca e calma, assistia à despedida dos últimos raios de sol. As lágrimas banhavam-lhe o rosto, descrevendo os delicados contornos da face.

A drástica mudança de vida ainda lhe perturbava e a fazia temer o futuro. A melancolia tomava conta do ambiente. Sua noite foi povoada por visões de pessoas alegres, comendo, bebendo e falando, enquanto os noivos dançavam.

- Bianca, acorde. – chamava Lígia.

Ela, que acabara de pegar no sono, abriu vagarosamente os olhos, deixando claro o seu desagrado.

- Que houve? – perguntou, bocejando.

- Já é tarde, Renato está do lado de fora.

- Ele não devia estar casando?

- O casamento foi há dias.

- Estou perdendo a noção do tempo. Mas não acho uma boa idéia vê-lo.

- Vamos, vou pentear seus cabelos. – sem que Bianca pudesse argumentar, a irmã já a arrumava.

Bianca permaneceu calada durante todo o tempo em que Renato ficara com ela, sentia-se envergonhada pelo que fizera e o que viera por conseqüência. Educadamente, quando estava saindo, perguntou por Daniela, a esposa, agora, de Renato.

Lígia entrou, tentou consolar Bianca, mas, desde o ocorrido, a irmã andava agressiva. Aos gritos, mandou que a outra saísse.

O choro era convulsivo e quase sempre terminava numa crise de asma. Tentando conter as lágrimas, pois Lígia deixara a porta aberta e o corredor daquele andar do hospital era muito movimentado, viu um garotinho passar, acompanhado pela mãe, numa cadeira de rodas. Parou, olhou para ela, sorriu timidamente e foi embora.

Apesar de estar lá há quase duas semanas, não percebera que estava na ala infantil. Mara, a enfermeira, entrou no quarto, levando o almoço.

- Por que estou aqui?

- Porque você bateu o seu carro num poste e, por pouco, não fraturou umas das vértebras da coluna, não se lembra?

Bianca suspirou e conteve palavras ofensivas.

- Não, Mara, por que estou na ala infantil?

- Ah, sim. Bem, na noite em que chegou aqui, não tínhamos um leito disponível na ala dos adultos. E o médico recomendou que não tentássemos transferi-la para lá agora, já que precisa de repouso absoluto.

- Entendi.

- Não está bem aí?

- Claro, querida. Meu namorado, há um mês, simplesmente diz que está apaixonado por outra pessoa e que vai se casar com ela. E, pela primeira vez na vida, bebo um pouco a mais e ainda sofro um acidente que quase me deixa paralítica. E ainda tenho que ficar aqui, olhando pra esse teto o dia todo! Estou realmente ótima, não?

- Tem sorte. – Mara respondeu, com calma, deixou a bandeja na mesinha de cabeceira, onde Bianca podia alcançar, virou as costas e foi para o quarto da frente.

Bianca suspirou. O que mais a revoltava era estar ali, sem poder se mexer, sair à noite, dançar, encontrar-se com os amigos. E ainda não obtivera uma resposta concreta sobre o tempo de sua estadia naquela estação do terror.

Mais duas semanas. Quase um mês de repouso. As visitas, dispensara todas, até a da própria mãe. Entretanto, havia uma, além de Mara, impossível de ser dispensada. Religiosamente, todas as manhãs, sempre às 10h, o garotinho da cadeira de rodas passava por ela, sempre com o sorriso tímido no rosto e o olhar cheio de esperança. Ao contrário do filho, a mãe não a saudava com tanta boa vontade, mas Bianca pouco se importava com os dois.

Foi então, numa manhã chuvosa, em que o ambiente cheirando a éter ficava ainda mais melancólico, que recebera a tão esperada notícia. Em três dias, no máximo, estaria de volta ao lar. A explicação do médico foi que, por muito pouco, não fraturara uma vértebra da coluna, que implicaria na perda de muitos movimentos. Se não ficasse todo esse tempo internada, poderia ter causado a fratura, o que complicaria muito mais a situação. Mas agora, com a ajuda de Mara, durante os três dias subseqüentes, poderia sentar-se e, como se negara a fazer as sessões de fisioterapia no hospital, faria depois da alta do médico.

Imediatamente chamou Mara e pediu, agora com uma docilidade bastante incomum, que a ajudasse a sentar. Teve um pouco de tontura no começo, mas, como a enfermeira foi levantando a cama aos poucos, obtiveram êxito.

Conseguia ver, perfeitamente, o relógio acima da porta, 10h. Infalivelmente, o garotinho. Ao vê-la sentada, abriu um sorriso enorme e, efusivamente, bateu palmas. Ela, querendo ser simpática, acenou com a mão.Ele respondeu e, como sempre, foi conduzido pela mãe para fora de sua visão.

Quando ia perguntar a Mara sobre o menino, apareceram na porta Lígia, Marcela, a mãe, e Cláudio, o pai. Imediatamente esqueceram todas as crises de Bianca, vendo-a novamente sorrindo e conversando. Abraçaram-se e Mara se retirou.

Como havia prometido, passados os três dias, o médico tornou a vê-la e surpreendeu-se com o progresso que fizera, mas fez com que prometesse procurar a fisioterapeuta indicada e fazer todos os exercícios prescritos por ela. Finalmente, deixaria aquele lugar monótono, motivo de sua agonia.

Já estava completamente independente, então se aprontou, para esperar que viessem buscá-la. A tarde estava linda, o sol, mais claro que nunca. Surpreendeu-se por ainda não ter reparado, mas, de seu quarto, tinha uma vista maravilhosa do mar, da praia de Copacabana. Da janela, tendo os olhos fixos nas pessoas que caminhavam, despreocupadas, na areia, fez uma prece silenciosa, o que não lembrara de fazer desde o dia em que acontecera o acidente.

Novamente as lágrimas desciam pela face, como a imitar os raios de luz emitidos pelo sol, agora já quase oculto, banhando a cidade. Percebeu o quão estivera errada durante o tempo de permanência ali, evitando o contato com a família e os amigos, pessoas que a amavam. Mas agora estava decidida a valorizar mais a vida que tinha, a família maravilhosa com que podia contar e a liberdade que saberia, agora, usar sabiamente.

Bateram à porta, quando ainda tentava enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão.

- Olá, você está bem?

Como resposta, apenas meneou a cabeça, afirmando.

- Qual o seu nome?

Não disse, entregou-lhe um envelope apenas. Nesse momento, o pai de Bianca chegou, sorriu ao pequeno e beijou a filha. Quando olhou de novo, o garotinho já não estava mais lá. Achou estranho, mas as despedidas e as pessoas que chegavam ao quarto para levá-la para casa fizeram com que se distraísse.

A recepção foi calorosa, cheia de música e presentes. Havia muita gente, inclusive Renato e Daniela. Com toda a agitação, o envelope ficara esquecido.

A letra de criança, denunciando a mãozinha trêmula que a desenhara, era irregular, mas legível. A mensagem, a princípio, parecera-lhe apenas cordial. Era a seguinte: “Espero que você fique boa logo, como eu, que já estou quase bom. Até algum dia, no balanço. Guilherme”.

Depois disso, a afeição que, independentemente de sua vontade, nascera pelo garotinho cresceu ainda mais, apesar de não ter compreendido o sentido da última frase.

Meses depois, já completamente curada, por intermédio da mãe, soubera que, no dia de seu acidente, atropelara uma criança que, como ela, já podia andar normalmente. A mãe do menino havia telefonado para comunicar a notícia. Imediatamente, Bianca soube de quem a mãe falava e, para confirmar suas suspeitas, olhou a foto no jornal com a história do garoto.

A paisagem ao fundo era a de um parque, e ela conhecia o lugar. Ficava próximo de sua casa. Sem pensar, correu até lá. E, como já esperava, lá estava ele, oferecendo-lhe um sorriso meigo e acolhedor. Imediatamente, desceu do balanço e correu para abraçá-la.

Não trocaram palavra alguma, a não ser o pedido de desculpas de Bianca, entrecortado por seus soluços. Guilherme reagira apenas sorrindo e colocando um dedinho sobre seus lábios, a fim a calar.

Abalada, ela não pôde mais dizer nada naquele momento, não conseguia entender aquela bondade, Guilherme tinha todos os motivos para estar enfurecido com ela, mas não. Ele a visitara todos os dias, sempre com o ar de riso no rosto, incentivando-a a viver.

Depois desse encontro, pelo que ficou sabendo, Guilherme e a mãe mudaram-se do Rio de Janeiro. Mas, para sempre, Bianca lhe foi grata, ao seu anjinho, o anjo do balanço.

Maria Flor
Enviado por Maria Flor em 17/07/2006
Código do texto: T196227