A Pequena e o incompreendido

O rosto sério. Os olhos compenetrados em cada silhueta desenhada delicadamente no corpo daquela criatura feminina, fabricados pelos laboriosos traços do grande espírito, aquele a quem devemos devoção e respeito, admiração e conhecimento, porque conhecimento é amor.

Ela tinha apenas dezessete aninhos. Era uma fada dançando no meio da sala. Seus movimentos sugavam minha atenção toda para ali. Eu me encontrava no auge dos meus treze anos. Sim. Estamos de acordo que ela era um pouco mais velha do que eu. Mas não importava. Ao invés de correr pela casa com os outros primos, a roubar salgadinhos e doces em cima da mesa, ou implicar os mais novos, ficava ali. Não ouvia o som estridente das violas, tampouco o cochichado dos ganzás. Nem via mais ninguém na casa. Só ela, na plenitude de sua delicadeza, sua beleza. Descobria os primeiros pequenos mistérios da fabulosa invenção do amor. Os outros primos mais novos sentiam minha falta, e às vezes vinham me dar empurrões e trombadas pra ver se eu ia com eles. Era eu quem tinha as maiores idéias, que acabavam nas grandes confusões que toda a molecada gostava de participar.

Mas não podia, não mais. Talvez nunca mais. Estava ali, e ali poderia permanecer o resto da minha vida. Olhando para ela. Finos panos de seda corriam pela sua pele e, coloridos, a cobriam. Ela parecia se divertir com a dança que estes promoviam em função da sua. Eu dançava também, no mesmo ritmo. Meu coração, meu pulmão marcavam o tempo dos seus passos, ela não errava, nem atrasava nenhum. Seu rosto estava pintado, os olhos se destacavam e fitavam os meus.

Entretanto, incrivelmente, contra toda a expectativa do movimento orgânico das ações, fui tirado da sala a força, pelos tios; que trazidos por meia dúzia de primos mais novos, sob reclames e solicitações me arrancaram pelos braços e me soltaram no jardim. Ah! aquilo não fosse certo de ser feito, de certo. Tanto era que passei a ficar murcho e chateado. O grande espírito com certeza agora em algum lugar não estava satisfeito, em outro, até danado estava. Porque seus ensinamentos mostravam a sabedoria de apreciar a beleza, e da necessidade de nos perdermos nela. Mas o tempo, o príncipe da verdade, haveria de esclarecer toda aquela injustiça, e fazer se arrepender sob o olhar da consciência aqueles que agiam sob o feitiço dos moleques vadios, que a custa de ter sua companhia lhe privavam do êxtase do amor, e daqueles olhos.

Deixei ficar a um canto, encabruado. Com a boca cheia de damasco e castanhas, cuspindo no chão, a evitar os pequenos companheiros. Eles não entendiam, não aceitavam. Mas eu queria mesmo era poder me prender na lembrança do corpo da prima fada bailarina. Linda como um anjo. De cintura fina e pele sensual, de movimentos demorados, e respiração enérgica, de lábios rosados e chamativos, do corpo delgado, e mãos encantadas. Ela era linda demais.

Quando menos pude perceber, contudo, já estava também correndo com os demais, a provocar os bem velhos na casa, e a castigar os mais novos, desta vez com mais vontade ainda, fazer-lhes pagar. Mas não tinha, o coração não permitia, afagava a cabeça dos fedelhos, dava-lhes abraço e tapinhas nas costas. Mas se voltassem a rodear aprenderiam novas implicações.

De repente ali estava ela. Sentada sob o salgueiro. Entregue, provavelmente em diálogo íntimo com o grande espírito. Pedi em pensamento profundo para que lhe contasse ali meus segredos, meu desejo de cuidar dela e dela ser seu marido. Com uma pequena cesta de castanhas me aproximei. Ela pegou algumas, sorriu. Acho que já entendia. Eu não sabia disfarçar, não havia nascido pra isso. Era um livro aberto para ela. Ela pegava uma castanha, uma a uma, e as comia devagar. E eu a olhava, como se fosse minha, minha pequena.

Final do dia, depois de tomar mais cascudos que o normal dos adultos a quem devemos obrigações, me enfiaram na tarefa inusitada e desconhecida de vigiar os mais novinhos, os que começavam a andar e em vês de falar, choravam. Tarefa terrivelmente chata e complicada, ainda mais que não era tarefa de um futuro guerreiro, mas das insuportáveis primas que estavam na mesma idade que eu. Da janela ainda pude ver a hora que entrou no carro e se foi. Mesmo andando, era como se ainda dançasse. Meus olhos a seguiam. Ah! pequena, minha pequena, se ela o soubesse.

No quarto, a risada das primas da mesma idade. Arrumei o queixo caído e a boca aberta. Como eram insuportáveis. E ainda elas ficaram ali me olhando com umas caras, mais do que esquisitas. Sempre prontas pra nos irritar essas daí. Na minha cabeça voava a imagem do anjo, da fada bailarina...

Da minha pequena.

Gregório Borges
Enviado por Gregório Borges em 22/12/2009
Código do texto: T1991182
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