Edifício Cinderela

A viagem de carro era sempre curta, morna e enjoativa. As curvas eram famosas, as de Santos, estrada velha. Na Serra era de costume achar uma ou outra queda d'água e apontávamos frenéticos, como boas crianças da cidade. Ouvíamos Roberto Carlos e cantávamos em coro 'chuva no meu pára-brisa'. Algumas vezes minha vó achava a fita de uma novela e torciámos para ser a fita Internacional. Mas não, era sempre a nacional, com muitas canções sertanejas.

Uma decepção muito grande me aflingia quando a neblina baixava e víamos a cidade nublada e um pouco fria. Mas não reclamávamos, pois a vó era de lua e podia se zangar. Quando já estávamos na cidade, São Vicente, os ouvidos desentupiam e podíamos sentir o gosto de sal nos lábios. Lembrávamos da vez que a vó esqueceu de por dinheiro trocado na carteira e não pôde pagar o pedágio. Demos risada.

Chegamos ao edifício. Era alto e de pastilhinhas azuis. Edifício Cinderela I. Pra quem mora em casa, prédio tem sempre um cheiro distinto. Parece que todas as pessoas de todos os apartamentos decidiram cozinhar as comidas mais fedidas ao mesmo tempo e o cheiro vazou pros corredores, escadas e elevador e lá decidiu morar para sempre. Levávamos as malar para cima e ao entrar no apartamento imaginei onde todo mundo iria dormir. Era sempre uma preocupação quando viajámos: quem iria dormir onde. Naquele caso, não tinhámos muita opção. Um apartamento kitchenete com o luxo de um minúsculo quarto era como os aposentos na torre da Gata Borralheira, com seus pequenos privilégios.

A cozinha era tão pequena, era só um corredor. Na sala. perto da janela, havia uma mesa bonita com quatro lugares. Pela janela se via um labirinto de prédios velhos, muitos deles de pastilhinha também. O mais próximo da gente era o Cinderela II, que cobria toda a vista para o mar, mas sobrava uma pontinha de oceano dentre edifícios.

Havia uma parede de cortiça, um sofá cama e uma televisão. Depois de acharmos uma barata morta no banheiro, a vó levou a gente pra comer pastel.

Não estava calor, mas o corpo ficava mole e grudento mesmo assim.

Eu pedi um pastel de pizza e coca cola. Minha vó me mandou ajeitar a postura e aconselhou que eu não tomasse mais coca-cola, senão iria para sempre ter aquela barriga estufada e perna fina. Além disso, ela perguntou se havíamos passado protetor solar no rosto. Ela era sábia, loira e de unhas vermelhas. Era a minha vó. Pensei que aquilo tudo era uma chatice, mas agora, muitos anos depois, entendo o quão importante é ter uma postura ereta, barriga chapada e sem manchas ou rugas de sol no rosto.

Depois fomos andar na praia e descobrimos que a água estava imprópria para banho, coisa fácil de se notar, pois numa quebradeira de ondas, onde muitas pedras se amontoavam, vimos uma gigantesca família de ratos grandes e pretos. Aprendi que mulher de marinheiro não tem medo de rato, pois como ela vive no porto e o marido está sempre em alto mar, é ela que, sozinha em casa com as crianças, tem que matar os ratos que vem atormentar.

Vimos um menino brincando no canal. O canal era mais sujo que o mar em si e minha vó disse que ele iria pegar hepatites na certa.

À noite fomos passear na feirinha onde comi um brigadeiro gigante e fui descobrir que era feito de farinha e joguei fora. Vimos mais daqueles ratos pretos e decidimos voltar para o Cinderela I.

À noite, meu irmão passou mal de asma e teve que fazer inalação. Senti pena dele, assim como ele sentia de mim quando era a minha vez de ter asma.

Na manhã seguinte, eu e minha prima andamos de patins no prédio e jogamos palavras cruzadas.

Pensei que iríamos fazer castelos na areia e nadar no mar até cansar. Mas bem que andar de patins era divertido, até a minha prima se queixar de fatiga e termos de subir.

Estava na hora de ir pra casa e no caminho de volta vimos um prédio enclinado para frente, como se estivesse lentamente caindo. Minha vó nos contou que era por causa dos moluscos que moravam em baixo do prédio. Eles se moviam e um dia, mais cedo ou mais tarde, o prédio iria cair. Torci para que não caísse quando estivéssemos por perto, fazendo efeito dominós até alcançar o Cinderela I.

Quando subíamos a Serra, a música do Roberto tocou de novo, a mesma música, no mesmo lugar.

Imaginei por que o prédio Cinderela se chamava Cinderela e adormeci pensando nos ratos.

Laís Mussarra
Enviado por Laís Mussarra em 10/01/2010
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