Rafaella

Rafaella era seu nome; ela que não tinha e era e de tanto ser e não ter foi obrigada a fazer o que faz. Na verdade, Rafaella era o seu quase nome. O nome verdadeiro ficara guardado na gaveta da cômoda, acomodado junto do seu quase coração.

Ela possuía um sorriso de porcelana. Digo possuía porque quando a vi pela última vez os tempos eram outros. Ela ainda podia sorrir. Se hoje pode novamente não sei, a minha onisciência não é tão onisciente assim - não tanto quanto a minha onipresença - porém olhar sem saber significa olhar sem sentir, e aqui estamos falando de ser.

Vejo o cru de sua boca em todas as esquinas que passo, seu olhar imprevisível e manipulador, o movimento dos seus quadris ao andar de um lado para o outro. A vejo em todas as partes, assim é e assim vai ser. Por quê? Não sei. Mas acho que todos a vêem. Todos que já a sentiram não deixam de vê-la jamais. Pelo cheiro? Pelo gosto? Não. Nada de sexo. O sexo de Rafaella é como todos os outros sexos; servem apenas para o prazer - satisfação pessoal que posso me dar a todo minuto se assim for a minha vontade. O que nos faz vê-la é o seu calmo pestanejar, a sua respiração que quase pára de tão lenta. Pacientemente bela. Disse isso uma vez a ela, e perguntei-lhe de que lhe servia tanta lerdeza. Ela perdeu seu olhar nos meus, e para fugir de uma resposta perdeu junto com ele o seu corpo. A lerdeza lhe serve como maneira de deixar de ver a vida. Com ela aprendi que o que importa não é a velocidade que vemos, mas sim o que nos deixamos ver. Ela não se deixava ver, fechava os olhos e abria como quem não quer nada. Ninguém nunca soube o porquê do sorriso que vinha sempre depois, e das lágrimas que teimavam em cair antes.

Não sei te dizer se um dia ela conseguiu ser realmente feliz. Sei apenas que se fez real, e se fez máscara de si própria. A propósito, nunca conheci feitio mais interessante: colocar você sobre você, para se proteger dos outros. Rafaella consegue ser várias em uma só. Várias aparentemente desconexas e imaturas, irracionais e prostituídas. Várias que ficam entre o amar e o não amar, entre o bater da porta do carro e o barulho do motor que se afasta, várias sim, com pernas coloridas expostas à luz da noite e com a alma dependurada na esquina de uma rua, junto a seu nome. Rafaella da rua tal. Era assim que se dirigiam a ela.

Bom, para se contar uma história, é imprescindível um começo, um meio, e um final. Pelo menos foi assim que me ensinaram na escola, na época em que me era viável freqüentá-la, e que, mesmo sem um pingo de vontade, sentava quase encostando o nariz na lousa e era atento a tudo dito pelo mestre; porém nunca pensei que um dia fosse escrever realmente algo, e nunca pensei que a utilização do conhecimento adquirido fizesse tão bem ao homem. A história deve ter começo, meio, e fim. A história deve ter coesão e deve ter coerência. A história deve conseguir prender o leitor e adaptá-lo à sua visão. O problema disso tudo é que a única visão existente é a de Rafaella, é o único começo e único final, onde o meio não importa e jamais importará devido à incoerência dos fatos. Não existem palavras difíceis nem fatos de chorar, não existem piadas infames ou intelectuais, não existe o ser e o não ser, não existe o ficar ou partir. Na verdade, sem querer ser chato, a história não existe. Existe apenas Rafaella; girando ao redor do mundo da mesma maneira que o mundo gira a seu redor.

Nos conhecemos como se conhece qualquer prostituta. E temos o mesmo início melancólico e dramático de toda história que trata do assunto. A vida se encarrega dos fatos assim como me encarreguei de Rafaella e Rafaella se encarregou de mim.

Éramos dois em uma só; eu e Rafaella, eu em Rafaella. Estávamos nela a todo o momento; melhor dizendo, a todo o momento em que minha mulher - Sim. Fui casado. E digo fui porque não sou mais. Tenho três filhos, duas meninas e um menino. - não estava em casa.

Eu e Rafaella brigamos no mesmo dia em que nos conhecemos. Achei o preço de sua transa muito caro e só me dei por vencido quando consegui um acréscimo de quinze minutos no programa. “O que são quinze minutos para quem já agüentou uma hora?” Rafaella sorriu e entrou no carro, esperando que minha boca a guiasse até mim, e nossas línguas se perdessem nas sutilezas infames de um beijo comprado. “Com o dinheiro desse beijo poderia ter tomado um sorvete com o seu filho”. Rafaella pensava assim, mas quando não se tem beijos e carinhos não se tem sorvetes e nem filhos. Esse é o grande problema da maioria dos casais. Como saber cuidar de uma criança se nem fazê-la se sabe mais?

Esse era o meu grande problema. Não sabia mais amar o que era meu pelo fato de ser meu. Minha mulher, meus filhos... Mas e daí? As mulheres e os filhos são bem mais bonitos e atraentes quando vistos sorrindo ou chorando em colo ou peito alheio, quando o ver condiz com a sua vontade, e passar despercebido por um ataque de quero-aquilo ou uma cena de você-é-meu não pesa em sua consciência. O espetáculo, para o espectador, é bem mais espetacular do que para o próprio artista.

Não sou artista e não sou espectador, sou apenas uma massa corpórea mergulhada em um mundo junto de outras massas corpóreas que se aderem ou se repelem. Sou um homem comum, que erra, acerta, fica triste ou feliz, ama e desama e se culpa pelo seu desamor. Tentei compensar um desamor pequeno com um amor grande. Comecei a amar Rafaella para me provar que ainda podia amar alguém.

Amar Rafaella não foi assim, instantâneo, porém foi prático. As coisas práticas, por mais difíceis que sejam, parecem instantâneas a um primeiro olhar, e só se mostram demoradas depois de uma análise muito minuciosa dos fatos que as compõem. Eu era um trabalho para Rafaella. Rafaella era uma prova de virilidade. Eu recebia o sexo, ela, o dinheiro. Uma troca, assim como o amor. O tempo não me fez menos trabalho, do mesmo modo que Rafaella não deixou de ser uma prova de virilidade; porém o trabalho se tornava atraente e a virilidade deixava de ser viril para ser romântica. Descobri que Rafaella me amava quando não cobrou mais caro para engolir meu esperma. Ela descobriu que eu a amava quando fiz questão de pagar. Sorrimos, e nos beijamos como se beijam os apaixonados. O beijo não precedia mais o sexo, e sim o sexo era uma conseqüência do beijo.

Um dia resolvi querer saber sobre sua vida de antes. Rafaella disse que preferia não se lembrar, porque quando se tem um passado, sempre se encontra pontos que o fazem melhor que o presente. Rafaella não queria sofrer, portanto não tinha passado. “O passado é a causa de todo sofrimento presente, e o presente, a causa de todo sofrimento futuro. Me empresta o isqueiro?”

As filosofias não precisavam ser filosóficas, precedidas e antecedidas de meditações. A vida era filosofia, para Rafaella. “Como os filósofos filosofariam sem a vida? A filosofia não passa de flashes de vida analisados por homens que têm tempo de analisá-los.”

Descobri que namorávamos quando ela me levou finalmente para conhecer sua casa. Era uma casa pequena, de madeiras alinhadas, bem feita e bem organizada. Uma típica casa de moça prendada e ordeira, que preza pelo seu silêncio limpo com cheiro de desinfetante. Rafaella me levou para sua cama, que por mais incrível que pareça, era de solteiro. “Não trago trabalho pra casa.”

Rafaella, antes de me beijar, foi fazer um café. Ela se sentou ao meu lado, colocou a xícara quente em cima de um guardanapo ao lado de uma foto dela com desesseis anos e uma menina no colo. “Essa é a minha filha. Hoje está fazendo faculdade.” Não disse mais nada, apenas chorou. Chorou com choro de mãe, com choro de mulher, com choro de nojo e choro de rua. Chorou como se chora quando se ama e não se tem. Descobri que o sorvete que poderia ter tomado com meu filho naqueles quinze minutos, nas mãos de Rafaella valeriam pela vida toda. “Ela pensa que eu morri. Não queria que ela soubesse quem eu realmente sou. Mas se deixasse de me ser não seria nada, e ela seria nada junto de mim, então preferi me ser, suja e promíscua, nojenta e volátil, para que ela pudesse ser algo, talvez o oposto, da mãe que nunca teve, ou teve e nunca soube por que é mais bonito ser órfã do que ser filha de uma prostituta de rua.”

Rafaella foi lavar o rosto. Abri a gaveta da cômoda involuntariamente. No RG uma foto dos seus traços ainda puros e na assinatura, Esperança. Esse era o seu verdadeiro nome, embrulhado em um maço de dinheiros tirado das suas pernas abertas e colocado nos bolsos de donos de instituições educativas. Transamos aquela noite. Nunca mais nos procuramos.

Marilia Westin
Enviado por Marilia Westin em 16/01/2010
Código do texto: T2032410
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