Início de uma noite de inverno

Nas paredes quadros espalhados – alguns de bom gosto; outros nem tanto. Entre eles transita diariamente uma alma solitária, insatisfeita. Dia e noite são as mesmas personagens; apagadas e quase todas inanimadas. O que vale um homem só, recalcado, infeliz e em constante busca pela autodestruição – sem êxito? “O que valho neste mundo de homens que, esperançosos, buscam a felicidade a todo custo?”

Contrariando-se a si mesmo, após verter todos os sentimentos, saiu. Qual lado seguir, afinal, quanto tempo trancafiado naquele espaço frio, malcheiroso e com visual repulsivo. A rua tinha outro cheiro. Embora olhar pessoas ainda lhe causasse repugnância. Insistiu em tomar um rumo. E tomou. Nos bares as pessoas bebiam, riam-se – sabe-se lá de que ou de quem, mas mostravam os dentes; provavelmente se se infiltrasse naquela turma talvez se sentisse melhor. Mas era melhor não. Pelo menos por ora. Continuou caminhando. Mendigos estendiam as mãos em clemência. Homens vinham e iam, afrouxavam a gravata; mulheres de traços finos passavam bufando, esbaforidas. Trabalho, casa - que vida! Talvez lhe faltasse isso para esconder os tédios, ou até eliminá-los. No trajeto uma mendiga chamou-lhe a atenção; não pela beleza ou feiura, a sujeira, o mau cheiro – apenas despertou-lhe o interesse em dialogar com ela. Riu de si mesmo. “Ora, pois, como isso é possível? Sequer tenho um cachorro para chutá-lo quando não o suportar mais ou acarinhá-lo quando sentir vontade...” A passos lentos, olhando firmemente a mendiga, foi aproximando-se:

- Boa tarde senhora! A que deve essa vida maldita – falta de dinheiro, desamor ou simples propósito? – disse com rispidez, mantendo o olhar fixo e desafiador.

- Boa tarde senhor! – A sua pergunta carrega demasiada rudeza. O que quer saber, afinal? Se gasto todo o dinheiro que ganho em bebidas ou prazeres mundanos? Tenho família senhor e toda moedinha que cai nesta vasilha é gasta no supermercado. Preciso alimentar meus filhos – são dois.

Ele parado à sua frente ouvia-a em silêncio, sem pestanejar; braços cruzados, pés afastados. Ela continuou:

- Creia senhor, embora talvez não lhe satisfaça todas as ansiedades; fui casada, tive empregos e hoje como vê estou aqui me humilhando. Jamais aceitei vender meu corpo. Entreguei-me fielmente quando jovem ao homem que o julgava ser homem. E foi: quando me deu Lucas e Luciano; meus lindos filhos.

Ele desfez-se da posição que já lhe causava incômodo, aproximou e sentou-se ao lado dela.

- Diga-me senhora! E onde está esse homem hoje? Não lhe ajuda na criação de Lucas e Luciano? – Tossiu em seguida.

- Não senhor! É uma história complicada e longa. Quer ouvir?

- Sim gostaria se não se importar. - Disse ele esfregando uma mão na outra, tentando ludibriar o ar gélido do início de uma noite de inverno.

Ela arrastou uma bolsa ensebada que estava à sua direita, enfiou a mão e tirou um cobertor desprovido de cor. Enrolou-se nele e continuou:

- Por qual motivo o senhor parou? Ficou e ouviu até agora parte da minha história? - Aparentemente não há diferença de outras centenas espalhadas por aí, como vê!

- Eu não sei lhe explicar senhora. Foi involuntário.

Ele levantou-se, esfregou novamente as mãos. Caminhou até à lanchonete, logo à frente, comprou dois cafés e um pedaço de bolo. E voltou. Entregou um café e o bolo a ela, assentou-se, e tomou o outro. Preferiu silenciar-se enquanto tomava o café, observando-a de soslaio. Ela comia como fosse o seu primeiro desjejum. E era. Ela terminou e lhe sorriu num gesto de agradecimento. Ele olhou-a. Então ela descontente com o gesto, disse-lhe:

- Obrigada senhor. Foi a minha primeira refeição hoje.

Ele fitou-a novamente e apenas meneou a cabeça.

- Senhor – ela continuou – sobre mim há uma longa história, como disse antes. Casei-me com Fábio numa noite linda de verão; casamento de pobre, mas organizado. Houve festa – um jantar, preparado pela minha família. Estava realmente apaixonada, muito apaixonada. Fábio era meu tudo; meu mundo. Após cinco meses engravidei dos meus queridos Lucas e Luciano.

E ele resolveu interpelá-la:

- A senhora amava mesmo o Fábio?

- Sim. Amava-o tanto que seria capaz de matar ou até morrer... – Não me chame de senhora, tenho apenas trinta e oito anos. Apesar desta aparência desleixada – gostaria de mudar.

O frio intensificava a cada minuto. Mas ele, contrariando aos seus hábitos, queria ficar – uma coisa diferente; não sabia se era prazer. As pessoas já transitavam em menor número; dado ao horário e ao intenso frio.

- Posso chamá-lo de você? – insistiu ela.

- Sim, claro. – Ele assentiu.

- No quarto mês de gravidez – ela ansiava por continuar – Fábio foi acometido por uma grave enfermidade. Tinha o meu trabalho com o qual cuidava de mim e dele. Ele foi sentado numa cadeira de rodas e os médicos foram contundentes: irreversível. Levei-o para casa. Trabalhava em um supermercado e nas horas de folga devota-lhe toda a atenção. Os meses foram se passando; Lucas e Luciano crescendo no meu útero e, claro, minhas forças físicas escasseando. E ainda assim levava Fábio aos lugares necessários: médicos, passeios...

Com a mão em forma de concha, ele, cobria parte da testa enquanto a ouvia. Ela fez uma pausa, olhou-o bem nos olhos e:

- Você parece não estar interessado no que estou lhe narrando? – Ela ralhou com veemência.

- Estou interessado sim. Encolhi um pouco, aquietei-me em razão do frio, nada mais. Continue.

- Numa manhã de sábado – ela prosseguiu – resolvemos passear. Preparei Fábio, vesti-o, ajustei-o à cadeira, peguei a bolsa e saímos - a barriga enorme. Na saída enfrentaríamos um declive acentuado. Não consegui segurar a cadeira e Fábio foi de encontro a um poste: traumatismo craniano. Fui condenada a homicídio culposo; serviços sociais durante dois anos. Suportei parte desse tempo; depois fugi. Mudava de cidade a cada semana. Somente aqui tenho suportado mais tempo – é muito frio no inverno, mas há pessoas caridosas que quase enchem minha vasilha de moedas.

Subitamente ele levantou-se e anunciou a partida:

- Já é tarde e preciso ir. Amanhã virei mais cedo para dar tempo de você narrar-me o restante da sua história.

Foi para casa. Entrou, olhou todos os quadros, foi à cozinha preparou um chocolate quente. Tomou-o e foi deitar-se. Pensou muito naquela mulher, sua história e como o prendeu por tanto tempo. Dormiu.

Levantou cedo, tomou o resto de chocolate. Foi à estante pegou um livro e o leu até a hora do almoço – contos clássicos. Tomou um banho e foi ao restaurante almoçar; self service - pagamento mensal. Voltou ao apartamento, cochilou e duas horas depois, saiu. Foi encontrar a mulher.

- Olá! Como passou a noite? Disparou ele.

- Passei como todas as noites de inverno; muito frio e pouco agasalho. – Ela respondeu-lhe encostando-se à mureta.

- Quer continuar a contar-me a sua história? Ele atiçou-a.

- Sim claro, preciso falar com alguém e você deu-me liberdade. Ela lhe falou sorrindo; um sorriso amarelo, sem vida.

Ele encarando-a disse:

- Você terminará a sua narração em minha casa. Terá banho quente e uma cama decente para dormir. Levante-se, vamos – disse ele virando-lhe as costas para que o seguisse.

Ela imediatamente atendeu-o. Quis juntar seus pertences, mas ele com fala mansa a impediu de fazê-lo; permitindo apenas os documentos.

- Você terá roupas decentes. Comprei algumas. Ele parou e aguardou-a soltar a bolsa no chão.

Ela o seguiu em silêncio. Entraram no apartamento e ela ainda em silêncio observou todos os quadros na parede, os livros na estante... Ele encaminhou-a ao banheiro, ajudou a se livrar daquelas roupas escuras, malcheirosas. Colocou-as no lixo. Enquanto ela banhava-se ele ligou para o restaurante e solicitou que a comida fosse entregue em quarenta minutos. Depois de algum tempo, ela saiu do banheiro; tinha agora a cor normal de mulher, não era bonita; cabelos maltratados, pele encardida, olhos grandes e matreiros. Contudo, ainda parecia ter menos de trinta e oito anos.

Jantaram. Ela contou a ele tudo que lhe viera à cabeça. Foram dormir. No outro dia, pela manhã, ele com a permissão dela, analisou alguns documentos. Vinha de muito longe – outro estado.

- Encontre Lucas e Luciano para mim? Ela pediu com tristeza nos olhos.

- Não medirei esforços para encontrá-los. – Ele se prontificou.

Ele saiu em busca de alguma informação que lhe auxiliasse na procura das crianças. Não obteve êxito. Voltou para casa. Teria que viajar a outro estado, afinal, as narrações dela foram tão convincentes que o comoveu. Saindo do quarto ela lhe pergunta:

- Não sei o seu nome ainda e você já sabe o meu. Como se chama? Indagou ela.

- Chamo-me Rogério Bertulli. Advogado aposentado, descendente de italiano. Não casei, nem tive filhos. Vivia só neste apartamento – eu, os quadros e os livros. – Adorei o seu nome, Dayse Machado.

Ela olhou-o por um período longo, rindo em seguida:

- É apenas um nome nada mais. Sou Dayse e daí? – moro ao relento, jogada a toda sorte. Um dia para mim é apenas um dia. Tomaram-me Lucas e Luciano. Ela esbravejou-se e voltou para o quarto.

Rogério, embora cansado, viajaria àquele estado na semana seguinte. Traria Lucas e Luciano a qualquer custo – decidido. Viajou. Percorreu cidades, portando uma foto e fotocópias dos documentos de Dayse. Ninguém a reconheceu. Não se deu por vencido, prosseguiu. Numa cidadezinha interiorana, uma senhora de oitenta e dois anos deu-lhe esperanças:

- Entre senhor Rogério. Vou pegar meus óculos. Disse a senhora, arrastando-se.

Rogério entrou e a aguardou na sala. Ela voltou. Assentou-se. Pegou novamente a foto e fitando-a disse com certa alegria:

- É Dayse! É Dayse! Senhor Rogério essa moça está desaparecida há mais de cinco anos. Seus pais procuram-na incansavelmente por muitos anos até que um acidente automobilístico os levou. A família reduziu-se a Dayse e uma irmã mais velha que mora no exterior – Canadá, eu acho. - Pobre Dayse!

- Conte-me mais senhora. Preciso de informações para encontrar Lucas e Luciano. – Rogério a instiga.

- Mas quem são esses, senhor Rogério? Indaga a senhora com os olhos arregalados.

- Eles são os filhos de Dayse, senhora. A senhora não os conheceu? Espanta-se Rogério.

- Senhor Rogério – disse a senhora ajeitando-se no sofá – Dayse nunca teve filhos. Aliás, lembro-me dela aos doze anos. Começaram os desmaios e foram amiudando-se. Os médicos a encaminharam para tratamento psicológico. Ela tem que tomar as drogas diariamente. A abstinência a transforma completamente; cria histórias, falsos namoros...

Rogério despediu-se e saiu. Chegou a casa à tardinha. Procurou por Dayse e não a encontrou. A empregada não conseguiu contê-la. Retornou ao local onde a conheceu. Lá estava a mendiga bem diferente – limpa. Conseguiu fazê-la voltar.

No outro dia pela manhã, Rogério recorreu a um antigo amigo de trabalho – médico. Dayse foi internada numa casa de repouso, diagnosticada - precisava de tratamento psicológico.

E Rogério, revigorado, ia diariamente visitá-la – tinha, agora, os quadros na parede, os livros na estante e uma filha. Dayse, medicada, esperava-o, sorridente todos os dias no jardim e de lá assistiam juntinhos os mais lindos crepúsculos.