MARCADA - Capítulo II

Em 1965 eu estava com treze anos. Foi aí que a nossa vida mudou de vinho para água, pois mesmo com todo o trabalho, nós éramos felizes.

Papai era muito alegre, sempre brincava com a gente. Dava-nos muito carinho. Mamãe, às vezes trabalhava de manhã até à noite e ainda chegava em casa nos beijando e perguntando como fora o nosso dia. Eu sempre com uma certa implicância com Cláudio que não me obedecia e não me ajudava em nada.

Como estava dizendo, em 1965 nossa vida mudou. Aconteceu-nos uma tragédia.

Em um sábado, papai dormiu um pouco e se levantou na hora do almoço e me falou:

- Cristina, arruma os meninos, vamos fazer um passeio.

- Ah! Hoje, papai? Deixa para amanhã. Hoje eu tenho que dar faxina na casa. Mamãe ao sair cedo me pediu para caprichar. E apesar de tudo o Cláudio saiu e eu não sei para onde ele foi.

Papai só saía conosco se estivéssemos todos reunidos. Ele, mamãe, eu, Cláudio, Sérgio, Patrícia e Juliana.

- Enquanto você arruma Patrícia e Juliana eu vou dar uma volta por aí para ver se encontro o Cláudio.

Estranhei papai querer sair sem mamãe. Mas a sorte dele era tanta que mal saiu, mamãe chegou.

- Dona Margareth precisou sair e eu não pude terminar sua roupa hoje, pois chegou em ponto de prova e ela não está para provar. Segunda-feira eu volto e termino. Eu vou agora te ajudar.

Entrou no quarto para guardar a bolsa.

- Ué! Seu pai já se levantou?

- Já, mamãe, ele mandou eu arrumar as meninas para fazermos um passeio.

- Passeio, hoje? Sábado? Que estranho, o João sempre gosta de sair aos domingos...

Nisso papai foi chegando com Cláudio.

- Oi, bem! Que bom você ter chegado, assim irá conosco, eu sempre gostei de sair com a família reunida. Vá se arrumar também.

- Não, bem, eu prefiro ficar aqui dando uma faxina na casa. Eu nunca tenho tempo para ajudar Cristina.

- Que nada. Vamos, vá se arrumar tem muito tempo de dar esta faxina.

Papai falou abraçando mamãe e dando-lhe um beijo na testa.

Eu que já tinha arrumado Patrícia e Juliana, fui me arrumar.

Sérgio foi o primeiro a ficar pronto, era o que mais gostava de sair de casa, enquanto Cláudio como sempre reclamando.

- Cristina! Onde está minha camiseta vermelha?

- Não grite comigo, Cláudio! Aquela camiseta de maconheiro, está na gaveta de baixo, coloquei-a lá para ver se você desistia de usá-la. Coisa mais feia!

- Não fele assim, minha filha, é o gosto dele. - falou papai com uma voz mansa que ele sempre teve para falar conosco.

Fomos ao cinema. Um filme infantil. Eu já moça não me interessei muito. Juliana acabou dormindo eu também resolvi fazer o mesmo, enquanto Cláudio reclamava:

- Estava muito melhor brincar com o Roberto, de bicicleta!

Acabou o filme, fomos a um parque de diversões. Neste, todos nós gostamos. Eu logo conheci um rapazinho de quinze anos, o qual fiz amizade e brincamos juntos em todos os brinquedos.

À noitinha voltamos para casa, pois papai teria de entrar no trabalho às sete e meia.

Chegamos em casa, foi só o tempo de papai colocar o uniforme e ir para a garagem.

Mamãe fez a janta e eu fui levar para ele lá no serviço, que era bem pertinho, de vista.

- Que janta gostosa! Foi você quem fez?

- Não. Foi mamãe.

Depois que jantou me entregou o prato. Dei-lhe um beijo na face e ele me abraçou com toda força que achei que ia me arrebentar.

- Eu não sei como dar graças a Deus pelos filhos e esposa que tenho. Você, minha filha, é uma mocinha, é a mais velha, quando eu morrer terá que cuidar de seus irmãos.

- Que bobagem, papai! Que conversa mais besta, o senhor vai demorar morrer, vai acabar de criar os filhos e ainda vai ajudar criar os netos, eu pelo menos vou querer dar-lhe pelo menos uns doze.

Rimos muito e eu fui embora acabar de assistir minha novela.

Patrícia e Juliana já havia dormido. Sérgio brincava de pintar um livrinho, Cláudio como sempre na rua e mamãe costurando para nós.

- Mamãe, hoje papai gastou tanto pagando para nós e para aquele amiguinho meu. Será que não vai fazer falta?

- Que nada, Cristina! Aquele dinheiro ele ganhou lavando carro ontem a noite toda, lavou oito carros.

- Será que não é perigoso papai ficar lavando carro, em vez de ficar lá dentro?

- Não, pelo contrário, ele ficando sem fazer nada pode dormir e tendo alguma coisa para fazer o sono não vem. E mudando de assunto, você ficou bem interessada no rapazinho, não é? Quem é ele? Onde mora? Ele é até bonitinho! - mamãe falou com um certo ar de gozação, pois nunca me interessava por rapaz nenhum, que apesar do corpo feito eu me achava muito nova para namorar.

- Ele chama-se Sandro, mora na Ceilândia, só isso que sei dele. Ah! É engraxate.

Mamãe terminou de costurar e foi se deitar, antes arrumou o lanche de papai que toda madrugada ia tomar. Mandou-me ir atrás de Cláudio.

- Cláudio, mamãe mandou te chamar, já está na hora de criança dormir.

- Criança é você, eu não sou mais criança!

- Ah! Não é não! É um rapazinho de onze anos!

Cláudio resmungou, mas foi embora dormir.

- Você não vai dormir agora, Cristina, já são onze horas.

- Não, mamãe, eu estou assistindo a um filme, está muito bom.

- Está bem, filha, boa noite!

- Durma bem, mamãe.

Fiquei ali assistindo ao filme deitada no sofá e acabei dormindo.

Fui acordada com um estrondo horrível, era um tiro. Pensei que fosse no filme, logo em seguida mais quatro tiros soaram aos meus ouvidos e eu vi a imagem de meu e gritei:

- Papai!

Mamãe acordou com meu grito, se levantou enrolada na coberta enquanto eu abria a porta e saia correndo igual uma louca em direção à garagem.

Cheguei lá e vi o de mais horrível uma filha pode ver. Papai no meio de uma poça de sangue, ainda respirando, nisso muitos moradores do prédio já descendo.

- Papai! Papai! Não é possível, papai. Gente! Mataram meu pai, papai! Responda por favor! Papai diga que o senhor não morreu, diga!!!

No desespero peguei-o coloquei sua cabeça no meu colo, segurei sua mão e ele a apertou e foi soltando devagarinho...

Alguém me pegou, não sei quem foi.

Mamãe havia desmaiado antes mesmo de chegar à garagem.

Onde morávamos só tinha pessoas boas, de bom coração.

No mesmo instante já estava cada um tomando conta de alguém. Tomaram conta de Patrícia e Juliana, as levaram para o apartamento do Dr. Edson. Cláudio e Sérgio levaram para o apartamento do "seu" José Martins que era um senhor aposentado.

No meio à confusão chegou a polícia e já foi fazendo o seu trabalho. Levaram meu pai para o Instituto Médico Legal para fazerem a necropsia.

Mamãe ficar intácta, não movia sequer um dedo, de vez em quando uma piscada lenta olhando para uma só direção.

Comecei a me desesperar, mas logo lembrei de suas palavras que havia me dito há horas: "Você é a mais velha. Quando eu morrer terá que cuidar de seus irmãos." Estas foram as últimas palavras que escutei dele.

- Eu vou cuidar de meus irmãos sim, papai! Eu te prometo! Pode ir em paz!!! - falei gritando com as mãos postas para o alto. Chorei muito.

O corpo foi liberado às dez da manhã do domingo e foi direto para a capelo do Campo da Esperança, o cemitério de Brasília.

Fomos para o cemitério. Neste meio tempo já tinham avisado meus tios no Rio Grande do Norte e os irmãos de mamãe em Goiânia.

Chegaram e foram direto para o cemitéio.

- Foi muito triste, minha filha, sua vó está doente e nem podemos contar para ela que João é finado. - disse-me tio Fábio.

Papai tinha quatro irmãos: tio Fábio, tio Francisco, tio Jó e tio Lico, na verdade nunca soube o nome do tio Lico; Lico era apelido. Papai tinha também duas irmãs: tia Josefa e tia Júlia.

Aquele dia, naquela capela, tudo era amargo, eu com treze anos sabia que naquele momento eu estava responsável por meus irmãos e por mamãe, que não falava nada. De vez em quando chorava, depois tornava a ficar quieta olhando somente para uma direção, parecia estar muito longe.

Os irmãos de papai havia chegado, mas tio Jordelino e tia Marieta, de Goiânia, ainda não tinham aparecido.

De Natal, vieram de avião e tio Jordelino e tia Marieta viriam de ônibus.

Chegaram, foi aquela emoção...

- Oh! Meu Deus como foi que aconteceu isto, logo com o João, Marilda. - falava tia Marieta com a mão segura à mão de mamãe.

Mamãe como sempre não falava nada. Todos sentiram a morte de meu pai. Não era porque era meu pai, mas era um ser incapaz de fazer mal a qualquer pessoa, muito caridoso, um marido e um pai exemplar. Nós éramos pobres, mas mamãe e papai trabalhavam para nos dar uma vidinha melhor, tínhamos tudo que necessitávamos. Todo final de semana papai pesseava conosco. Se existe um sexto sentido, papai sabia que iria morrer naquela noite.

Chegou a hora do enterro. É a pior fase da vida da gente, ver uma pessoa querida entrar naquele buraco e saber que não verá nunca mais. Foi muito triste... Mamãe não agüentou. Eu como sempre firme, chorava desesperadamente, mas muito consciente de minha responsabilidade. Nunca vi tanta gente reunida num enterro, os amigos, vizinhos, conhecidos estavam todos ali prestando sua última homenagem a papai.

Nunca me imaginei passando por tal situação...

Acabou a cerimônia, aquela seria a última morada de papai. O povo foi saindo pouco a pouco e eu fiquei ali. Tinha medo de voltar para casa. Fiquei pensando o seria de nós, o que estava reservado para nós. Aquele apartamento que morávamos era destinado ao zelador, mas papai trabalhando na garagem do prédio automaticamente ocupava o apartamento. E agora, eu sabia que não iriam nos despejar, mas por obrigação teríamos de arrumar outro lugar para morar. Morávamos lá desde l961.

Tio Jó chegou perto de mim:

- Minha filha, vamos para casa, vamos descançar. Agora para vocês começou uma vida nova...

Tio Jó falou mas não conseguiu terminar, as lágrimas brotaram em seus olhos e ele chorou junto comigo.

Chegamos em casa. Estávamos ali como se não fosse a gente, tudo parecia pesadelo.

Entrei na cozinha e ainda estava lá o lanche que mamãe havia preparado para ele. Coitado, de certo estava até com fome...

Maria Lúcia Flores do Espírito Santo Meireles
Enviado por Maria Lúcia Flores do Espírito Santo Meireles em 28/07/2006
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