Utilidade, ela se tornou

Olhos lacrimejantes, memória entulhada, coração apertado, sorriso escondido são alguns dos ingredientes do cotidiano de Utilidade. A lembrança do seu passado se confunde com o presente e ela se pergunta: o que fiz até hoje, onde chegarei assim?

Tornou-se utilidade para as pessoas com quem conviveu. Sempre correu para dar conta de todas as suas tarefas. Esteve sempre pronta para socorrer a todos que lhe pediam ajuda. Viveu assim por mais de dez anos em um ambiente que parecia, aos olhos do mundo, a perfeição. Mas na verdade não era assim. Todos queriam se sobressair, se engrandecer, se destacar, mesmo que em detrimento de alguém, como no caso de Utilidade.

Aos poucos, Utilidade foi percebendo isso e se enchendo dessa vida. Mesmo assim, continua sendo "utilidade", pois aprendeu a viver assim. Por ser competente, inteligente, ágil e criativa, ela se destacava sempre, principalmente, nas artes do computador. Logo a inveja, o ciúme e a indiferença passaram a ser barreiras com as quais ela se deparava no seu dia-a-dia. O triste de tudo isso, é que Utilidade sempre fazia suas atividades pensando que o todo ganharia com seu trabalho... mas não era isso que acontecia.

Resultado: ela se cansou e partiu daquele lugar. Queria voar por outras imensidões. Caminhar sobre nuvens. Olhar sem preocupar-se com os afazeres cotidianos. Seu imenso desejo era sorrir, cantar, divertir-se, trabalhar com criatividade sem preocupar-se com o que os outros dirão. Queria trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro, coisa que não acontecia antes.

Mas para sua surpresa, já se passaram três anos e ela não atingiu seus objetivos. Continua segurando chifres, fazendo e fazendo coisas, preparando e criando situações para um cotidiano melhor... e suas ações continuam sem lhe merecer a gratidão e o reconhecimento merecido.

Utilidade está decepcionada consigo mesma, com os outros, com o mundo. Antes, quando solteira sofreu o descaso. Agora, como esposa e mãe também não conseguiu sua realização. Já percebeu que serve como “utilidade doméstica”, “utilidade profissional”, “utilidade para proporcionar isso ou aquilo”. Mas seu verdadeiro desejo de se tornar alguém reconhecida, por seus méritos mais nobres, parece longe de ser alcançado.

Trabalha há dois anos em um projeto que parece quase no fim, mas o fim não chega porque há sempre algo no caminho. Ora é o desenvolvedor. Ora é o momento. Ora é um desafio doméstico. Ora é algo pessoal. E assim, os centavos por seu trabalho ainda não chegaram. Sente-se ainda mais como “utilidade” porque depende financeiramente de seu esposo. Ela que sempre quis ser independente financeiramente....

Parece que Utilidade ainda tem muito caminho a percorrer para alcançar seus objetivos. Enquanto isso não acontece, vamos cuidar do nosso cotidiano para não cairmos nos mesmos desafios que a nossa amiga. Por sua experiência, sabemos que desejo não é realização nem garantia de sucesso. Só nos resta cuidar de nossas experiências, de nossas escolhas, de nossos desejos para que não nos precipitemos nas decisões.